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Fri, 29 Sep 2023 in América Latina en la historia económica
Cultura do privilégio: entrave para o desenvolvimento econômico na América Latina
Resumo
O presente artigo tem como objetivo contribuir para o entendimento dos entraves para um projeto de desenvolvimento econômico na América Latina contemporânea. A premissa elencada pela pesquisa é a de que os projetos e as estratégias desenvolvimentistas executados pelos governos vanguardistas nos países da América Latina sofrem de entraves e se tornam truncados em virtude, frequentemente, da cultura do privilégio presente na sociedade latino-americana. O artigo optou em realizar pesquisa de revisão bibliográfica pautada em leitura sintópica. Os resultados obtidos são de que, na América Latina, grande parte da elite dirigente carrega introjetada um desprezo pelo seu próprio povo –visto como subgente– e um fascínio e subalternidade perante o colonizador –economias centrais– visto como modelos de humanos e de civilização. Isso faz com que haja uma cultura do privilégio responsável por um horror social e fator relevante pelo entrave ao desenvolvimento econômico na região.
Main Text
Introdução
Constantemente, ouve-se, sobretudo pela mídia mainstream que propala uma visão econômica da ortodoxia convencional, que o problema de a América Latina não conseguir executar um projeto de desenvolvimento econômico consistente de longo prazo capaz de proporcionar a emulação dos produtos, o catching-up com a ampliação, a integração e a sofisticação da estrutura produtiva deve-se, em grande medida, ao patrimonialismo (Buarque, 1995; Faoro, 1993, 1998; Rodríguez, 2006), ao clientelismo (Caciagli, 1982; Carvalho, 1997; Nunes, 1948, 1980; Theobald, 1992), ao caudilhismo (Goldman e Salvatore, 1998; Sarmiento, 1952), ao populismo (Di Tella, 1974; Drake, 1982; Freidenberg, 2007; Greenspan, 2007; Ianni, 1975) e a corrupção (Bayley, 1966; Hope, 1987; Lazzarini, 2011) presentes na região.
Muitos dos propagadores dessas alegações deixam a sensação de que é como se essas dinâmicas, impasses, dilemas e contrariedades típicos do sistema capitalista somente ocorressem em economias periféricas. Algo que não é verdade, pois eles estão presentes nas economias centrais. A América Latina, na visão da ortodoxia convencional e de seus instrumentos de reprodução, sofreria, assim, de um horror econômico, fazendo alusão ao livro de Forrester (2002), ou de um horror político, em referência ao livro de Généreux (1998), derivados, substancialmente, da presença desses fenômenos sociais-políticos listados no parágrafo acima.
Este artigo procura validar a premissa de que, na verdade, um dos entraves medular para a execução de um projeto bem-sucedido de desenvolvimento econômico inclusivo e sustentável na América Latina é o horror social denominado de cultura do privilégio. Esse é fruto de um movimento histórico-sociológico com implicações na economia e na política, atuando como uma sociopatologia. A cultura do privilégio está inoculada na estrutura social e é validada por uma superestrutura ideológica típica de sociedades que padeceram perante a invasão, a colonização de exploração, a dizimação dos povos originários, a escravidão e a transplantação cultural.
Para validar a premissa elencada pelo artigo, realizou-se pesquisa bibliográfica pautada em leitura sintópica, ou seja, não houve a restrição somente em comparar diferentes estudos, livros e pesquisas sobre a temática, mas houve, também, a laboração de edificar uma apreciação singular e com considerações originais acerca da questão.
O procedimento metodológico, para selecionar as referências, foi pesquisa bibliográfica focada nos autores e nas instituições pautados na sociologia concreta e na sociologia analítica –capaz de discriminar de forma integral e holística as diferentes causas responsáveis em truncar os projetos de desenvolvimento econômico na América Latina.
O artigo é composto por três seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira seção, o estudo apresentou o conceito de desenvolvimento econômico. Na segunda seção, o texto voltou-se para a operacionalização conceitual de cultura do privilégio. Na terceira parte, a pesquisa demonstra que a cultura do privilégio funciona como um horror social capaz de truncar e de travar os projetos de superação do subdesenvolvimento econômico na América Latina.
Importante enfatizar que o recorte técnico-metodológico do artigo é, sobretudo, em torno de conceitos e de teorias, não das experiências históricas, sociais e políticas dos governos e dos países latino-americanos. A pesquisa se esforçou em apresentar uma nova sistematização teórica-conceitual, embasada nos recentes estudos de autores e de instituições da América Latina para melhor compreender e interpretar a realidade social, política, histórica e econômica da região. Contudo, a pesquisa não tem o escopo de empregar, neste momento, este arcabouço teórico-conceitual em estudos de casos. O artigo tem o anseio de ser muito mais um ponto de partida referencial teórico-conceitual do que um fechamento argumentativo e investigativo.
Desenvolvimento econômico: uma breve apresentação conceitual
Para ponto de partida e melhor compreensão da argumentação lógica-conceitual apresentada pelo artigo é fundamental compreender o conceito de desenvolvimento econômico.
Para Furtado (1983), o conceito de desenvolvimento econômico é entendido como acumulação de capital a partir de combinações mais efetivas dos fatores de produção. A acumulação permite o aumento do fluxo de renda, por unidade de força de trabalho utilizada. A acumulação, contudo, tem de estar subordinada à lógica de um sistema de incentivos materiais com melhora da qualidade de vida da coletividade, englobando não somente a ideia de crescimento econômico (expansão da produção real no quadro de um subconjunto econômico), mas, também, a de desenvolvimento econômico. Nas palavras de Furtado:
O crescimento econômico, tal qual o conhecemos, vem se fundando na preservação dos privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização; já o desenvolvimento se caracteriza pelo seu projeto social subjacente. […] Dispor de recursos para investir está longe de ser condição suficiente para preparar um melhor futuro para a massa da população. Mas quando o projeto social prioriza a efetiva melhoria das condições de vida dessa população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento (Furtado, 2004, p. 484).
Bresser-Pereira (2016), que foi um dos precursores dos estudos acerca do desenvolvimento econômico na América Latina e que continua em intensa produção acadêmica, formulou um conceito de desenvolvimento econômico que praticamente sintetiza todas as suas concepções anteriores que remontam desde a década de 1960. Para o autor:
O desenvolvimento econômico é o processo de acumulação de capital com incorporação de progresso técnico que resulta em transformações estruturais da economia e da sociedade e no aumento dos padrões de consumo de um Estado-nação. É um processo histórico que ocorre a partir da revolução capitalista e, particularmente, da revolução industrial; é o aumento continuado da produtividade, que implica uma sofisticação cada vez maior da mão de obra empregada na produção [...]. Por isso, o desenvolvimento significa industrialização ou, mais amplamente, sofisticação produtiva. (Bresser-Pereira, 2016, p. 111).
Em estudo prévio no qual mapeamos diversos conceitos de desenvolvimento econômico e ousamos em atualizá-lo, operacionalizamos o seguinte:
Uma definição mais global a formulação e a operacionalização do conceito de Desenvolvimento Econômico podem ser entendidas como: combinação de distintos processos --mas, sobretudo econômico-- que visa proporcionar uma transformação estrutural na cultura, nas instituições, na economia, resultando em mudanças sociais profundas e abrangentes em um território determinado. É um processo dependente de um Estado Desenvolvimentista com planejamento específico para oportunizar a acumulação de capital --crescimento econômico--, a expansão das potencialidades e das capacidades humanas e produtivas para ampliação, integração e sofisticação produtiva com a instauração de novas forças produtivas e sociais capazes de romper com o dualismo interno e a dependência externa, gerando novas relações de produção mais inclusivas e sustentáveis, alargamento da liberdade individual e coletiva ao democratizar o capital econômico, o capital cultural e o capital social, consequentemente, aumento dos indicadores de bem-estar (saúde, educação, segurança, sustentabilidade ambiental, esporte, cultura e seguridade social) (Moraes, 2023, p. 38).
O Estado, desse modo, que busca estratégias de crescimento econômico, não de forma irracional e meramente exponencial, mas visando se desenvolver para retirar-se da periferia do sistema econômico mundial, conforme apontou Moraes (2023), é um Estado com intenções desenvolvimentistas. Para tanto, o Estado precisa ter o propósito de sua mudança da estrutura produtiva, para ter maior desenvolvimento econômico e social. O crescimento econômico é um caminho para tal feito, não o ponto final. O Estado, assim, necessita de estruturar e de executar um projeto desenvolvimentista.
Na América Latina, quando os governos vanguardistas ousam em edificar um Estado desenvolvimentista eles enfrentam não somente os entraves políticos e econômicos, usualmente presentes nesses projetos emancipatórios, mas, maiormente, um horror social, operando como uma sociopatologia intitulada: cultura do privilégio.
Cultura do privilégio: entendendo o conceito
De acordo com a Nações Unidas, através do Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (em diante cepal) (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, 2018a), o desenvolvimento econômico jamais ocorrerá na América Latina caso os países da região não enfrentem seus problemas na dimensão social, com ressonância na política e na economia, sendo o principal, a cultura do privilégio. Segundo o documento da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (2018a), a América Latina e o Caribe possuem uma cultura do privilégio que tem origens desde a invasão, a conquista e a colonização da região pelos países centrais.
No processo de invasão de Abya Yala (terra madura, terra viva ou terra em florescimento –autodesignação do povo Kuna para o território que eles habitam e que hoje é considerada América), de colonização por exploração, de dizimação de seus povos originários e de transplantação cultural, os europeus afixaram a noção de que havia duas classes de seres humanos na região, isto é, os "privilegiados" –detentores do modernismo, da iluminação, da cultura, do saber– e os "subgente" –presos aos corpos, bárbaros, incivilizados, incultos, próximos de animais.
Por mais de 500 anos, o conquistador, o colonizador, o crioulo, o fazendeiro, o caudilho, o aristocrata e o político adotaram uma cultura de negação do outro no continente latino-americano e caribenho. Ao controlar o Estado, a maioria da elite, essencialmente descendentes de europeus, menosprezou os povos originais, os afrodescendentes, os zambos, as mulheres e, quando as repúblicas foram estabelecidas, estendeu-se a negação aos imigrantes não europeus, aos camponeses, aos caipiras, aos ribeirinhos, aos mineradores, aos analfabetos, aos habitantes de favelas e aos trabalhadores braçais (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, 2018a).
Na América Latina, uma categoria de humanidade foi excluída da condição de ser-humano e colocada em um subgrupo por conta da cultura do privilégio. Para Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (2018b), a cultura do privilégio pode ser entendida a partir de três traços: a) naturalização da diferença como desigualdade; b) a diferença é justificada pela posição, adscrição racial ou de gênero, origem, cultura e poderes políticos e econômicos; c) para perpetuar os privilégios e a hierarquia, os atores aparelham instituições que determinam regras e práticas, estabelecendo uma dialética entre a naturalização da diferença como desigualdade e a reprodução das desigualdades por meio de estruturas e de instituições sociais.
Nesta dialética, a cultura do privilégio garante assimetrias em múltiplos âmbitos da vida coletiva, como o acesso a posições privilegiadas nos negócios e nas finanças; o poder decisório ou deliberativo; a maior ou menor presença em meios que impõem ideias, ideologias e agendas políticas; a captura de recursos públicos para benefícios privados; condições especiais de justiça e sistema fiscal; contatos para ter acesso a melhores empregos e serviços; e facilidade para obter os melhores lugares para viver, circular, educar-se, abastecer-se e cuidar-se (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, 2018a, pp. 49-50).
A cultura do privilégio está no cerne do que Souza (2017; 2018) denominou de pensamento racista originário da elite dirigente na América Latina. De acordo com Souza (2017; 2018), o racismo na elite latino-americana não é somente no sentido mais restrito do preconceito fenotípico ou racial. O racismo é um sistema hierárquico capaz de categorizar indivíduos, separando ontologicamente os seres humanos de primeira e de segunda classe e até mesmo separando países para reproduzir privilégios e legitimar "a suposta superioridade inata de uns e a suposta inferioridade inata de outros" (Souza, 2017, p. 18).
Segundo Souza (2018, p. 31), o racismo inarticulado está introjetado nas relações sociais da sociedade latino-americana e é subjacente a todos os aspectos da vida privada e pública. A grande maioria dos membros da elite latino-americana não somente vê uma imensa parcela da população como "ralé estrutural", "subgente", "subcidadão", mas percebe as sociedades europeias e estadunidenses como sendo modelos, "super-cidadãos", "super-homens". A parcela da elite dirigente tomada pela cultura do privilégio, torna-se, segundo Souza (2017), em uma elite do atraso.
O racismo presente na cultura do privilégio estende-se, até mesmo, para os produtos –materiais, culturais– e para as instituições –políticas e sociais– produzidas pelas economias centrais. Por exemplo, a elite do atraso enaltece a produção internacional de manufaturados, preferindo os importados –vistos como mais evoluídos do que os produtos nacionais. A elite do atraso tem predileção de consumir a cultura estrangeira –filmes, músicas, esportes, danças, etc.– percebidas, também, como mais puras e elevadas do que a cultura local e popular, classificada como vulgar e medíocre.
Inclusivamente, os padrões do belo, do comportamento ideal, das roupas são discriminados e naturalmente divididos. "Essa ideia possibilita a união do desprezo das elites internacionais em relação à periferia do capitalismo, com o desprezo das elites nacionais pelo seu próprio povo" (Souza, 2018, p. 15).
As experiências de organizações institucionais das economias centrais –escolas, partidos políticos, sistema político etc.– também são veneradas como ideais e modelos para a elite do atraso, inviabilizando, assim, novos arranjos e inovadoras experiências locais. Isso, ainda, facilita a monocultura institucional, a transplantação cultural e a subalternação econômico-política, beneficiando a perpetuação da dominação-dependência entre economias centrais e periféricas.
Para Souza (2017; 2018), o racismo presente na cultura do privilégio é um mecanismo de naturalizar as desigualdades e a separação de indivíduos, de gêneros, de povos e de países muito mais eficaz que todos os códigos jurídicos e instituições. Há praticamente uma compilação de regras sociais não escritas, concebendo uma noção mental e um expediente psíquico que mantém a maioria dos membros da elite dirigente vivendo na ilusão de uma superioridade intrínseca e o resto da população confinada a papéis predeterminados que a desfavorece na conquista de capital econômico, de capital cultural e de capital social, empregando os conceitos de capital do Bourdieu (1977; 2007).
Verifica-se que o racismo da cultura do privilégio não é algo institucionalizado formalmente pelo Estado e pela sociedade. A cultura do privilégio se encontra implícita na dimensão da vida cotidiana, no Estado, no mercado, nas instituições e demais relações sociais e culturais. É algo intersubjetivo e perpetuado por grande parcela da elite dirigente, mas com consequências concretas e estruturais para toda a sociedade, uma vez que os indivíduos mais atuantes na cultura, na economia e na política conseguem moldar os padrões de existência da maioria da sociedade. A cultura do privilégio é um habitus.
O habitus é um sistema de estruturas cognitivas e motivadoras incorporado desde a primeira infância, estabelecendo um esquema de conduta e de comportamento que passa a gerar práticas individuais e coletivas em um determinado território. O habitus faz algo do passado se manter até o presente, permite a corporificação da história de uma comunidade, naturalizando-a e esquecendo sua gênese (Bourdieu, 2007; Souza, 2018).
A formação do habitus da cultura do privilégio na América Latina ocorreu, ao longo da história, por conta de ações religiosas, políticas, educacionais, midiáticas e da indústria dos bens de consumo cultural de massa –cinema, televisão, livros etc.– que reproduziram a lógica do invasor, do conquistador, do colonizador na crença da divisão entre seres "superiores", "super-homem" e seres "inferiores", "subgente", a "ralé estrutural". Em virtude desses setores e meios "que essa hierarquia moral que separa os homens e as mulheres em seres de primeira e segunda classe ganhou nossos corações e nossas mentes" (Souza, 2017, p. 21).
O habitus precário --que implica a existência de redes invisíveis e objetivas que desqualificam os indivíduos e grupos sociais precarizados como subprodutores e subcidadãos, e isso, sob forma de uma evidência social insofismável, tanto para os privilegiados como para as próprias vítimas da precariedade-- é um fenômeno de massa e justifica minha tese [...] de uma ralé estrutural nas sociedades periféricas (Souza, 2018, pp. 252-253).
Em razão de ser algo corporificado, com seus acordos e consensos sociais naturalizados, mudos, informais, mas estruturalmente aprofundados; a cultura do privilégio é um mecanismo altamente eficaz de estratificação social para manter as hierarquias e as desigualdades sociais na América Latina. "A dimensão aqui é objetiva, subliminar, implícita e intransparente. […] ela não precisa ser linguisticamente mediada ou simbolicamente articulada. Ela implica, como a ideia de habitus em Bourdieu" (Souza, 2018, p. 250).
Respeitando as devidas particularidades, singularidade e intensidades, pode-se afirmar que a cultura do privilégio é algo do tipo do apartheid, regime de segregação racial implementado na África do Sul de 1948 a 1994, ou como o sistema de divisão social em castas do hinduísmo da Índia antiga. Contudo, não formalizado e nem institucionalizado, logo mais velada, de difícil identificação e de árduo combate: "When people have lived with assumptions long enough, passed down through the generations as incontrovertible fact, they are accepted as the truths of physics, no longer needing even to be spoken. They are as true and as unremarkable as water flowing through rivers or the air that we breathe" (Wilkerson, 2020, p. 184).
Na América Latina, foi estabelecido um tipo de "castismo tácito", ou seja, a arquitetura de ações, de estruturas e de instituições para limitar, deter e fixar determinadas pessoas em uma posição hierárquica definida, elevando-as ou rebaixando-as com base naquilo que é percebido como categoria de análise civilizatória eurocêntrica e judaico-cristã. A maioria dos membros da elite dirigente se sente detentor da cultura do privilégio, como se fosse pertencente a uma casta superior. Ela vive a ilusão de uma superioridade genuína sobre todos os demais grupos humanos da região. Superioridade essa que, supostamente, permitiria, inclusive, o uso de armas de fogo e armas brancas para demonstrar dominação e extrair uma servilidade da "subgente".
Casteism is the investment in keeping the hierarchy as it is in order to maintain your own ranking, advantage, privilege, or to elevate yourself above others or keep others beneath you. For those in the marginalized castes, casteism can mean seeking to keep those on your disfavored rung from gaining on you, to curry the favor and remain in the good graces of the dominant caste, all of which serve to keep the structure intact (Wilkerson, 2020, pp. 70-71).
O "castismo tácito" sequer é percebido pela grande maioria da população, inclusive por setores da intelectualidade e de universitários. Esses padrões, apesar de evidentes (ou por causa disso mesmo), nem sempre são facilmente reconhecíveis. A maioria dos latino-americanos ainda não aprendeu a reconhecer a etiologia psíquica de seus males individuais e coletivos, não os conseguindo controlar por esse motivo. A cultura do privilégio se torna, dessa forma, em um processo automático, um habitus que gera uma sociopatologia. É um sistema, muitas vezes, orientado pelo viés inconsciente ou viés implícito, isto é, por crenças e falsas ilusões herdadas e que ditam o comportamento da maioria dos latino-americanos de forma tão natural que raramente há questionamentos (Agarwal, 2020).
Nós não refletimos nunca acerca dessas hierarquias, assim como não refletimos sobre o ato de respirar. É isto que as fazem tão poderosas: elas se tornam naturalizadas. Esquecemos que tudo que foi criado por seres humanos também pode ser refeito por nós. Como não percebemos essas hierarquias, elas mandam em nós todos de modo absoluto e silencioso. O fato de não percebermos facilita enormemente seu efeito perverso. [...] Se essa hierarquia moral é invisível para nós, seus efeitos, ao contrário, são muitíssimo visíveis (Souza, 2017, p. 22).
A falta de percepção da cultura do privilégio, por expressiva parcela da população latino-americana, ocorre, particularmente, por conta da rejeição e da corporificação da história da região por sua sociedade. Na América Latina, há uma recusa, capitaneada pela elite do atraso, de compreender sua história como de fato foi: marcada por violência direta, violência cultural e violência estrutural, aplicando os conceitos de violência operacionalizados por Galtung (1969; 1990).
Por se perceberem privilegiados, a elite do atraso se sente moralmente perfeita, rejeitando, desse modo, em encarar suas sociopatologias, suas crueldades, suas limitações e seus sadismos construídos ao logo da história. Sem a realização da autoanálise, sem o reconhecimento do problema e sem uma revisão histórica com reparação, a cultura do privilégio, com todo seu racismo e castismo tácito, continuará a ser herdada de geração para geração por meio de acúmulo de noções e de ideias que são transmitidas para os mais novos em espaços familiares, escolas, igrejas, partidos políticos, mídia etc., mantendo o habitus.
As gerações mais novas validam esse habitus mediante o que algumas correntes da psicanálise chamam de identificação arcaica. As crianças na construção do seu superego acabam introjetando elementos, aspectos, valores, propriedades e atributos de outros indivíduos ou instituições na estrutura de seu próprio ego. Depois, a criança quando adulta totaliza, projetando regularmente essa identificação arcaica nas outras pessoas (Freud, 2006). "Como somos formados, como seres humanos, pela imitação e incorporação pré-reflexiva e inconsciente daqueles que amamos e que cuidam de nós, ou seja, os nossos pais ou quem exerça as mesmas funções, a classe e seus privilégios ou carências são reproduzidas a cada geração" (Souza, 2017, p. 89).
A reprodução da cultura do privilégio culmina por criar uma identificação arcaica e até mesmo subjetiva de pertencimento do indivíduo a uma determinada camada social, quase como se fosse realmente uma casta, na América Latina. Por exemplo, para um indivíduo vivendo na ilusão de uma superioridade intrínseca se por acaso houvesse a destruição da cultura do privilégio, o próprio ego, para ele, poderia se fragmentar. A identidade foi construída sobre esse alicerce e preceitos.
No one escapes its tentacles [Caste]. No one escapes exposure to its message that one set of people is presumed to be inherently smarter, more capable, and more deserving than other groups deemed lower. This program has been installed into the subcon­scious of every one of us. And, high or low, without intervention or reprogramming, we act out the script we were handed (Wilkerson, 2020, p. 384).
Isso ocorre, pois, apropriando dos estudos de Fromm (1964), os indivíduos crédulos dessa superioridade intrínseca da cultura do privilégio são induzidos a um autoengrandecimento. Esse leva a uma distorção da realidade concreta, uma supervalorização do subjetivo, da realidade interna-abstrata e a contração da capacidade de pensar e de analisar racional e logicamente. Toda a história, as ações, os comportamentos e os sentimentos deles e de seu grupo são superestimados e intensificados enquanto toda a história, as ações, os comportamentos e os sentimentos da "subgente", da "ralé-estrutural" são subavaliados e diminuídos. É um modo de pensar e de viver narcisista da elite do atraso. Nas palavras de Fromm, "The essence of this overestimation of one’s own position and the hate for all who differ from it is narcissism" (1964, p. 79).
Dentro do habitus criado pela cultura do privilégio, a maioria da elite dirigente se enxerga como um farol onde os demais grupos precisam se orientar. É modelo de intelecto, de normalidade, de beleza, de moral, de costumes, etc. Possuem, supostamente, o poder de avaliar, de julgar, de classificar os demais grupos sociais. A grande mídia e as principais instituições públicas reproduzem a cultura do privilégio, retratando os membros da elite dirigente como "homens de bem", esforçados, superiores na maioria dos aspectos da vida moderna-capitalista.
[...] it would be the rare outliers who would go out of their way to experience the world from the perspective of those considered below them, or even to think about them one way or the other, and the caste system does not require it of them.Society builds a trapdoor of self- reference that, without any effort on the part of people in the dominant caste, unwittingly forces on them a narcissistic isolation from those assigned to lower categories. It replicates the structure of narcissistic family systems, the interplay of competing supporting roles --the golden-child middle castes of so-called model minorities, the lost-child indigenous peoples, and the scapegoat caste at the bottom (Wilkerson, 2020, p. 268).
Percebe-se que no habitus propalado pela cultura do privilégio na América Latina, a elite dirigente tem de estar sempre correta, de ser a mais bem informada, a mais competente, a que deve ser prestigiada, louvada, respeitada, estimada e reconhecida. A programação introjetada no subconsciente da elite dirigente desde a colonização direcionou-a para um ilusório papel social de nobre, de magnifico, de iluminado, de sábio, de digno e de honroso.
É entendido, dentro dessa lógica, que a elite dirigente teria o aval para conduzir, explorar, usar, corrigir, disciplinar, satirizar, violentar e policiar a "subgente". Para essa, "a ralé estrutural", o habitus da cultura do privilégio tenta infiltrar, sistematicamente, no seu subconsciente o papel de servir, de entreter, de confortar, de consolar, de perdoar, de suportar, de aclamar, de contemplar, de não questionar qualquer violação de diretos humanos, trabalhistas, abusos e irresponsabilidades afetivas, físicas, sociais e psicológicas e tampouco esperar qualquer reparação por parte dos seus transgressores.
Em razão disso, um dos fatores primordiais para manutenção desse habitus, desse castismo tácito é o monopólio do capital cultural nas mãos da elite dirigente. Para Souza (2018, p. 94) o "critério hierarquizador básico aqui é o capital cultural definido como a soma do capital educacional e a origem familiar". O acesso ao capital cultural, particularmente ao ensino superior de qualidade, é capturado pelos descendentes da elite do atraso. Isso se tornou tão naturalizado que ocorre de forma orgânica e, não raramente, sem questionamentos.
Um ponto interessante para se destacar é que o monopólio do capital cultural para a elite dirigente proporcionou um dos mais eficientes mecanismos de identificação de pertencimento em qual camada social o indivíduo ou os grupos se encontram, ou seja, na de privilegiados ou da "ralé estrutural". O identificador é o domínio da norma culta do idioma herdado pelo colonizador. Esse domínio ou não, em algumas regiões e locais, é uma ferramenta mais eficiente de segregação e de categorização das pessoas entre "elite dirigente" e "ralé estrutural" do que os bens materiais, a conduta corporal, os fenotípicos ou a cor da pele. Por isso, na América Latina, os detentores do capital cultural, usualmente, enfatizam muito mais a forma da fala e da escrita do que o conteúdo em si. Se o emissor do conteúdo for visto pela elite do atraso como membro da "ralé estrutural", seu discurso, mesmo tendo lógica, racionalidade e propagando a verdade, é, frequentemente, ridicularizado, satirizado, diminuído, invalidado e menosprezado se a forma não seguir a norma culta do idioma vigente.
Segundo Hofmeister (2007), na América Latina, o movimento das elites é bastante restrito, havendo a edificação de "círculos sociais fechados" na perspectiva weberiana. As elites latino-americanas, assim, criam um habitus de autopreservação e autorreprodução do privilégio, principalmente por meio da captura do acesso ao sistema de ensino de qualidade. São estabelecidos círculos sociais fechados, o que, aliás, facilita a identificação arcaica.
A cultura do privilégio é uma sociopatologia uma vez que, de acordo com Souza (2018, p. 11), separa as classes sociais em "classes dos espíritos", as supostas classes "superiores" e "classes do trabalho manual e corporal", as classes "inferiores". As primeiras têm seus sentimentos, comportamentos e ações validados ou relativizados e o Estado ampliado, para empregar conceito de Gramsci (1987), procura acolhê-las e apoiá-las. As segundas são condicionadas a sufocarem suas dores, seus talentos (menos os de alguns esportes e estilos de música para diversão da elite do atraso), sua inteligência e seus amores. Elas, para o Estado ampliado capturado pela elite do atraso, são como máquinas, tração de força manual, desapropriadas de sentimentos, de comportamentos e de ações elevadas, portanto merecem no máximo uma inserção-excludente, isto é, a edificação de sistema educacional, de saúde, de saneamento básico, de lazer, de cultura precarizada e desqualificada.
Há um limite até onde se pode mover, não há uma mobilidade social. O Estado ampliado embriagado pela cultura do privilégio lhe proporciona uma inserção-excludente, segundo Kuenzer (2002). Os melhores empregos, cargos, funções, serviços, etc. devem permanecer entre os membros da elite dirigente e seus descendentes. Por exemplo, a grande parcela da população pode sonhar em ser enfermeiro, técnico em eletrônica, professor do ensino básico, mecânico, quem sabe até um advogado, mas a cultura do privilégio não assegura que o Estado forneça meios e tampouco infraestrutura social para almejarem as profissões mais bem remuneradas e com maior concentração de poder social-político como: médico, engenheiro, juiz, promotor de justiça, professor universitário, etc.
Isso é tão notório que é comum nos países da América Latina haver reportagens nos grandes meios de comunicação quando alguém da "ralé estrutural" consegue conquistar algum papel destinado a membros da elite dirigente. O direcionamento das matérias jornalistas para esse fato, quase sempre, segue um modelo esquematizado. Começa com uma manchete sensacionalista, por exemplo, "Lixeiro que virou médico", "Motorista que se tornou delegado", etc. e no conteúdo da matéria enaltece o esforço individual e defende uma ilusória meritocracia. A intenção é passar a sensação de que a conquista de capital econômico, de capital cultural e de capital social é algo plausível de ser alcançado nas sociedades latino-americanas. Não é habitual tal fato ocorrer, não é costumeiro e nem trivial, se fosse não seria capa de jornal, de revista e nem matéria televisa, uma vez que seria algo corriqueiro e não surtiria audiência.
Não é por acaso que, segundo pesquisa Global Social Mobility Index 2020: Why economies benefit from fixing inequality do World Economic Forum (2020) realizada com 82 países, não há nenhum país latino-americano entre os 30 melhores no quesito de mobilidade social. A melhor posição é do Uruguai em 35º, México está em 58º, Brasil em 60º. Os primeiros lugares ficaram com os países nórdicos. Não é por acaso que a América Latina é o continente mais desigual do mundo, de acordo com Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (2018b) e Centro de Estudios Distributivos Laborales y Sociales (cedlas) (2020) (véase gráfico 1).
Evidencia-se que a cultura do privilégio gera uma ausência de reconhecimento da própria população local por parte da elite do atraso e do próprio Estado ampliado. A naturalização da desigualdade de seres humanos na América Latina "inflige feridas profundas, atingindo suas vítimas com um autodesprezo mutilador. Uma dessas formas de feridas profundas parece-me a aceitação de precariedade como legítima e até merecida e justa" (Souza, 2018, p. 257).
Os marginalizados pela elite do atraso e visto como "subgente", por estarem em um contexto social de carência de acesso a capital econômico, a capital cultural e a capital social, não contando, ainda, com rede de apoio estatal, ficam reprimidos de insurgirem contra a cultura do privilégio. A não incorporação desses capitais implica em uma realidade social, política, econômica, psicológica, espiritual e existencial precária, sem dignidade e humanidade.
Isso, ademais, contribui, segundo algumas linhas de pesquisa da psicanálise, para um quadro de transtorno dissociativo da realidade generalizado em grande parcela da população. A dissociação da realidade, em grosso modo, ocorre quando o indivíduo, neste caso específico uma camada social, sofre, por longos períodos e/ou com grande intensidade, com violência direta, violência cultural e violência estrutural, fazendo com que sua psique busque, por exemplo, a despersonalização, o entorpecimento psicológico e o desengajamento em relação aos eventos abusivos. Outras características do transtorno dissociativo da realidade podem incluir: ansiedade, baixa autoestima, somatização, depressão, dor crônica, disfunção interpessoal, abuso de substância, automutilação, ideação e ações suicidas (Briere, 2006; Van der Kolk et al., 1996).
Na América Latina, há aproximação física entre brancos e pretos, imigrantes europeus e povos originários, homens e mulheres, fazendeiros e camponeses, industriais e operários, letrados e iletrados, cisgênreros e transgêneros, etc., entretanto há distanciamento afetivo-empático. Desde a invasão europeia a Abya Yala, nunca houve, na região, uma "democracia social", "democracia étnica" ou "democracia racial" como sustentaram diversos intelectuais e políticos durante décadas. Na América Latina, há um racismo inarticulado no cerne da cultura do privilégio permeando todas as relações sociais, políticas e econômicas dos indivíduos. O que sempre houve na América Latina, desde então, foi uma "intimidade do corpo e distância do espírito" (Souza, 2018, p. 173).
O corpo fica próximo para ser violentado psicologicamente, mentalmente, espiritualmente e fisicamente. A elite do atraso mantém o corpo dos supostos "subgente" perto para ser usado como máquina, força braçal, tração animal a seu serviço, para ser ridicularizado, satirizado, espetacularizado, diminuído e violentado de toda forma. A elite do atraso conserva uma relação de exploração-dominação econômica, política, cultural e social, mas, também, mental e psicológica, pois é sádica e preconceituosa com quem ela não considera como "privilegiados". A alma fica longe, pois, para a elite do atraso, a "subgente" não é digna de ter suas dores, sonhos e alteridade reconhecidos. Não é digna de afeto e de empatia no mesmo nível que há entre os privilegiados.
A elite do atraso pratica sim a caridade, a valorizando como algo nobre, digno, honroso, superior, mas sabe-se que ela por si só não modifica a estrutura do castismo tácito latino-americano. A caridade alimenta o ego, acalma a consciência pseudocristã e proporciona aumento de poder nas mãos dos doadores. A elite do atraso não apoia programas governamentais para democratizar o acesso a capital cultural, a capital econômico e a capital social, isso sim atuaria no cerne do problema.
Na América Latina, a elite do atraso não consente projetos para igualdade social porque para ela qualidade de vida não é basicamente viver em um Estado de bem-estar, mas envolve se sentir superior e melhor do que os outros. Por isso que programas sociais de governos vanguardistas visando aumentar a coesão social, o bem-viver e as igualdades de oportunidades são atacados, quase sempre, com a habitual retórica de "ameaça comunista". Quem está acostumado com privilégios qualquer tentativa de aumento de democratização, de competição e da participação social se transforma em imaginada revolução socialista.
A cultura do privilégio, além do mais do que foi demonstrado anteriormente, produz, ainda, uma contradição absurda para a sociedade de mercado. Há uma evidente cultura consumista de bens e de serviços capitalistas sendo constantemente propalada e difundida como determinante para integralidade e felicidade humana. Contudo, há uma estrutura social, econômica e cultural edificada há séculos que exclui majoritariamente a população latino-americana de consumir. Isso gera frustação, exclusão e violência, principalmente para as novas gerações que foram bombardeadas desde a primeira infância com a necessidade do consumo em massa e com a ideologia liberal pelos grandes meios de comunicação.
A cultura do privilégio com o falso engrandecimento, o narcisismo, os preconceitos, o sadismo, a necessidade de exclusividade, superioridade, a violência direta, a violência cultural e a violência estrutural da elite do atraso, favorecendo o transtorno dissociativo da realidade, a frustação, o ressentimento de forma generalizada explica, relativamente, a razão de a América Latina ser a região mais violenta do planeta.
Apesar de a América Latina concentrar apenas 8% da população mundial, ela registrou 37% do número de homicídios em 2019. Dos 20 países com as maiores taxas de homicídios, 17 são latino-americanos. Brasil, Colômbia, México e Venezuela são responsáveis por 25% dos assassinatos globais. Mais de 130 grandes cidades latino-americanas (com mais de 250 000 habitantes) podem ser consideradas altamente perigosas, pois têm taxas de homicídios superiores a 25 para cada 100 000 habitantes. Entre as 50 cidades mais violentas do mundo, 43 estão localizadas na América Latina e Caribe (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, 2022; United Nations Children’s Fund, 2022; United Nations Office on Drugs and Crime, 2019).
Na América Latina e no Caribe, a taxa regional de homicídios de crianças e de adolescentes (12,6 a cada 100 mil) é quatro vezes maior que a média global (3 a cada 100 mil). O homicídio é a principal causa de morte entre meninos adolescentes de 10 a 19 anos. Em 2020, mais de 4.576 mulheres foram mortas na América Latina e Caribe vítimas de violência contra a mulher. De 25 países com as taxas mais altas de feminicídio, 14 estão na América Latina, fazendo da região uma das mais perigosas para ser mulher no mundo fora de zona de guerra (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, 2022; United Nations Development Programme, 2017; United Nations Office on Drugs and Crime, 2019).
Em suma, a cultura do privilégio promove uma iniquidade social, uma sociedade menos benevolente, com menos responsabilidade coletiva, com estratificação social rígida, baixa coesão social, baixa perspectiva de prosperidade para a maioria da população, baixa eficiência no uso dos recursos materiais e das capacidades humanas, ressentimentos, frustações, dissociação, narcisismo, sadismo, consequentemente, mais violência cultural, estrutural e direta. A cultura do privilégio não permite que na América Latina haja um "consenso acerca da necessidade de homogeneização social e generalização do tipo de personalidade e de economia emocional burguesa a todos os estratos sociais, como aconteceu em todas as sociedades mais importantes da Europa e da América do Norte" (Souza, 2018, p. 149).
Por fim, diante do exposto, o artigo se propõe a operacionalizar o conceito de cultura do privilégio de forma mais acurada e otimizada do que o da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (2018a). Para pesquisa, a cultura do privilégio é um habitus que funciona como uma sociopatologia, gerando um horror social na sociedade latino-americana. A cultura do privilégio estabelece um castismo tácito na América Latina, separando ontologicamente os seres humanos de primeira e de segunda classe e até mesmo separando países. Suas principais características são: a) superioridade intrínseca versus inferioridade intrínseca; b) naturalização da diferença como desigualdade; c) a diferença é justificada pela posição, adscrição racial ou de gênero, origem, cultura e poderes políticos e econômicos; d) anti-igualitarismo; e) narcisismo e autoengradecimento da elite do atraso; f) captura do capital econômico, capital social e, especialmente, do capital cultural por parte da elite do atraso; g) autoritarismo com uso recorrente de violência direta, violência cultural e violência estrutural por parte da elite do atraso; h) dissociação, frustação e estigma de grande parcela da população; i) orientada, muitas vezes, pelo viés inconsciente; j) irracionalismo.
Cultura do privilégio: horror social e entrave desenvolvimentista na América Latina
Quando surgem escândalos de corrupção nos governos latino-americanos, as vozes de economistas e de cientistas políticos liberais ganham ressonância no meio acadêmico e na mídia. Seus argumentos sempre são os mesmos. O estado desenvolvimentista seria o culpado por criar um ambiente favorável ao crony capitalism (capitalismo de compadrio) que, consequentemente, incentivaria a cultura patrimonialista, o clientelismo, o corrompimento de agentes e de atos do Estado, a baixa eficiência do mercado e o populismo econômico. Na visão dos liberais, o estado desenvolvimentista seria o responsável pela baixa dinâmica do mercado e pelo insucesso da América Latina em romper com o subdesenvolvimentismo. Dessa maneira, qualquer política pública ou projeto de desenvolvimento econômico na região, para os liberais, teria que, necessariamente, passar pela reforma bruta do Estado, diminuindo suas funções e máquina.
Os estudos de história econômica, por exemplo, Chang (2004; 2008; 2009), Fosu (2013a; 2013b), Reinert (2008), Wade (1990), Rodrik (2005; 2007), Bresser-Pereira (2016; 2017a; 2017b; 2018) e Amsden (2001) deixaram mais do que claro que o desenvolvimento econômico das economias centrais somente ocorreu por causa da adoção de um Estado desenvolvimentista em determinado período histórico. Após a ampliação, a integração e a sofisticação da estrutura produtiva, algumas economias centrais revisitaram o papel do Estado no desenvolvimento econômico, caminhando para um developmental network state, mas jamais adotaram um Estado exclusivamente liberal, conforme demonstram Block e Keller (2011) e Mazzucato (2014).
Contudo, a denúncia dos liberais ao crony capitalism –capitalismo de laços, como prefere Lazzarini (2011)– não é totalmente inválida. Se ao adotar o Estado desenvolvimentista os agentes públicos não se atentarem para os arranjos e os mecanismos institucionais de reciprocidade, de gerenciamento e sempre possuir embedded autonomy, para empregar o termo cunhado por Evans (1995), o risco de haver desvios do propósito técnico-econômico é grande. A lógica econômica cede, assim, espaço para uma lógica de contatos sociais e critérios políticos, colocando todo o projeto do Estado desenvolvimentista em risco. Nas palavras de Lazzarini:
Esse emaranhado de contatos, alianças e estratégias de apoio gravitando em torno de interesses políticos e econômicos é o que eu denomino *capitalismo de laços. Trata-se de um modelo assentado no uso de relações para explorar oportunidades de mercado ou para influenciar determinadas decisões de interesse*. [...] À primeira vista, o termo "laços" pode denotar relações próximas, íntimas, duradouras. Aqui, entretanto, o significado é mais no sentido de relações sociais valiosas: um contato pessoal que é estabelecido para obter algum benefício particular ou, ainda, um gesto de apoio visando algo em troca no futuro. [...] Para alguns economistas, o capitalismo de laços é uma espécie de distorção no mercado, fazendo com que projetos ou decisões de investimento sejam influenciados por contatos sociais e critérios políticos em vez de considerações mais isentas sobre o seu mérito econômico. Sob a influência de contatos --incluindo contatos com políticos e governantes--, os recursos poderiam ser mal alocados na sociedade, favorecendo os interesses das partes envolvidas (Lazzarini, 2011, pp. 3-4, grifo no original).
O capitalismo de laços é um fato e um risco em qualquer projeto de qualquer modelo do desenvolvimentismo. Todavia, isso não quer dizer que o responsável por ele existir seja o tamanho do Estado. Além de concentrar toda a responsabilidade do subdesenvolvimento econômico para uma "crise política" ou "horror político", alguns liberais chegam ao absurdo de defender o fim da política e do político e o nascimento do "gestor" e a exaltação extrema ao mercado.
Por outro lado, nos estudos dos novos institucionalistas, como North (2018) e Williamson (1985), há o foco do horror econômico e político por conta de instituições fracas e a falta de consolidação democrática na América Latina. Afirmar que o desenvolvimento econômico somente ocorreria se houvesse instituições políticas e sociais fortes, acompanhadas de uma sociedade civil organizada e democrática é, no mínimo, constatar algo óbvio.
Fazer essas inferências é olhar de forma superficial para um tema complexo. Essas afirmações e proposições dos ortodoxos e dos institucionalistas se mantêm no campo das definições e das especulações e não no campo da procura de causas e de soluções concretas para problemas estruturais e fenômenos políticos e sociais. Enquanto os liberais e os novos institucionalistas simplificam suas leituras acusando o Estado, a política, os políticos e as instituições; o método histórico-estruturalista da cepal vem se aprofundando e servindo de alicerce para análises –sociologia concreta e sociologia analítica– capazes de discriminar, de forma integral e holística, as diferentes causas responsáveis em truncar qualquer projeto de desenvolvimento econômico na América Latina. Para este artigo, como visto na seção anterior, uma das principais causas é a cultura do privilégio.
Do ponto de vista econômico, o fascínio de grande parte da elite latino-americana pelo colonizador –visto como detentor da civilidade e modelo a ser seguido– faz com que ela seja economicamente entreguista. O termo entreguista foi cunhado por intelectuais e políticos vinculados ao projeto nacional desenvolvimentista no final da década de 1940 no Brasil para designar os defensores da participação do capital estrangeiro como mecanismo de industrialização e de exploração das riquezas naturais da América Latina. Os entreguistas, de acordo com Bresser-Pereira (2003), podem ser intitulados de globalistas –no sentido de defensores da economia cosmopolita de Adam Smith e David Ricardo– ou colonialistas.
O globalista ou entreguista afirma a própria incapacidade do país, e espera a orientação e o apoio dos países ricos. Os velhos nacionalistas, no pólo oposto, também reconhecem a superioridade dos países ricos, mas entendem que os interesses desses países seriam sistematicamente contrários aos nossos Os jogos entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos teria soma zero: quando um ganha o outro perde. Logo, seria preciso ser contra o estrangeiro, contra as empresas multinacionais, contra as agências multilaterais (Bresser-Pereira, 2003, p. 418).
Os entreguistas também podem ser compreendidos pelo conceito de herodianismo. Segundo Werz (2007), este termo remete à figura do rei da Judéia Herodes (37 a. C.-4 a. C.) que vivia fisicamente na Palestina, mas culturalmente em Roma. Neste sentido, é possível dizer que há uma "herodização" das elites latino-americanas, pois são "sociedades que, en última instancia, sólo físicamente tienen su asiento en América Latina, pero que en realidad viven intelectual, económica y políticamente en los respectivos centros hegemónicos" (Sandner e Steger, 1973, in Werz, 2007).
A cultura do privilégio seria uma das grandes responsáveis pelo fato de que todos os modelos de desenvolvimentismo adotados na região serem truncados, incompletos, falhos, permitindo com que o discurso monetarista-liberal e a retórica entreguista avancem e ataquem o Estado, o político e a política. Grande parte da elite da América Latina não possui uma cultura democrática e desenvolvimentista vanguardista de fato. Na realidade, essa parcela da elite nem se compreende como latino-americana. O que há é uma cultura do privilégio que é defendida pela elite do atraso –nos termos de Souza (2017) – ou pelos entreguistas– para Bresser-Pereira (2003), e uma veneração e vontade de pertencimento perante as economias centrais, uma síndrome do herodianismo.
A elite do atraso ou os entreguistas, conscientemente ou inconscientemente, fazem de tudo para não perderem seus supostos privilégios e manterem suas hierarquias. O acesso ao capital econômico, capital cultural e capital social, dessa maneira, nos países da América Latina, é monopolizado, pois "É o monopólio dos capitais que irá fazer com que uma classe social possa reproduzir seus privilégios de modo permanente" (Souza, 2017, p. 91).
A cultura do privilégio, assim, permite com que se construam alianças e preconceitos –por parte da elite do atraso– para impedir a democratização dos capitais para as demais camadas sociais. O acesso ao capital econômico, capital cultural e capital social passa a ser entendido como uma distinção natural, inata e transmitidos "pelo sangue" e pela origem. A cultura do privilégio, por consequência, dificulta a construção de coesão nacional, de pactuação de classes e o surgimento de um destino comum pontos fundamentais para qualquer projeto desenvolvimentista.
Hofmeister (2007) aponta que o papel da elite de uma nação para o projeto de desenvolvimento econômico é auxiliar na construção de uma comunidade democrática e legitima por meio de:
La competencia técnica, la competencia social y la competencia política. A ello tiene que sumarse también la capacidad de analizar problemas complejos interrelacionados y de desarrollar soluciones innovadoras a los problemas. A eso se adhiere naturalmente la valentía de asumir responsabilidad, a la par de la capacidad de liderazgo bajo las condiciones de un sistema libre, democrático y pluralista que en nuestros días se organiza más y más según los criterios de la economía de mercado (Hofmeister, 2007, p. 130).
Na América Latina, no entanto, a naturalização da diferença como desigualdade e a reprodução das desigualdades por meio de estruturas e de instituições sociais, a asfixia aos valores, cultura e as produções locais, o entreguismo, o herodianismo, enfim, a cultura do privilégio inviabilizam com que o Estado adote um projeto desenvolvimentista técnico, com interesses coletivos, responsabilidade social e competência político-econômica.
Os governos e os grupos vanguardistas na América Latina, com valores e defensores do latino-americanismo, encontram dificuldades, por exemplo, em cortar recursos ou realizar reformas estruturais em setores econômicos, sociais e políticos que mantêm a cultura do privilégio com esta lógica de horror social. Os supostos privilegiados se apoderam do Estado e suas instituições colocando-os a seu serviço. O "assalto" ao Estado ocorre pelo que Faoro (2000) intitulou de estamento-burocrático.
O conceito de estamento-burocrático, resumidamente, é o patrimonialismo-clientelista e os privilégios extra-econômicos que um grupo da sociedade constrói em sua relação com o Estado. Um grupo se apodera do Estado, utilizando-o como artefato e colocando a máquina pública a seu serviço. O estamento-burocrático quer um mercado restrito ao seu grupo e quer um Estado a serviço dos seus. O estamento-burocrático gera um Estado patrimonialista e representa um freio reacionário, voltado para si mesmo e preocupado em assegurar as bases do poder e a suposta "ordem" (Faoro, 2000).
O horror político do patrimonialismo-clientelista, desse modo, seria um sintoma da cultura do privilégio. Os reprodutores da cultura do privilégio utilizam do estamento-burocrático para apregoarem um Estado mínimo em determinados setores, mas em outros não. Este Estado mínimo seletivo arquitetado pelo estamento-burocrático é responsável por perpetuar não somente a cultura do privilégio, mas, também, o dualismo econômico e a dependência na América Latina. Não permite a valorização do local, a moralização dos segmentos assalariados, à democratização ao capital cultural, a expansão do consumo superior, a dinamização do mercado, ou seja, mantém regiões e indivíduos em condições arcaicas e presos a praticamente um castismo tácito.
Não houve, na região, uma política sistemática de criação de identidade coletiva, de gerar um sentimento de pertencimento e de orgulho das memórias históricas, mitos e símbolos das sociedades de Abya Yala ou da América Latina contemporânea. A região sofreu com a invasão, a ocupação, a dizimação dos povos originários, a transplantação cultural, enfim, houve a dominação-dependência econômica, política, cultural e social. Diferentemente do leste asiático, região que está experienciando projetos bem-sucedidos de desenvolvimento econômico recentemente, onde a dominação-dependência foi distinta e a reação das sociedades e dos países invadidos e ocupados também.
A República Popular da China, por exemplo, segundo Vieira (2018), tem toda uma política massiva de enaltecer a identidade nacional, o pertencimento coletivo, o patriotismo e a história de grandeza da dinastia Han (Império do Meio, 206 a. C. até 220 d. C.). Além disso, a República Popular da China atribui a fragmentação social e o subdesenvolvimentismo como fatores determinantes da impotência e da vergonha impostas pelas derrotas e ocupações de seu território por potências estrangeiras nos séculos xix e xx. Isso funciona como instrumento de identidade nacional e coesão social, econômica e política (Vieira, 2018). O Estado facilita o surgimento da consciência da necessidade de desenvolvimento econômico e do enfrentamento contra o entreguismo e o herodianismo.
A República Popular da China, assim como a Coréia do Sul, rejeitou o desenvolvimento associado-dependente. O capital externo e as empresas multinacionais e transnacionais foram regulamentadas e disciplinadas nesses países. Vários países do leste asiático, segundo Moraes (2021) e Moraes, Ibrahim, e Tauil (2019) encararam a globalização de maneira pragmática e realista, inserindo-se ativamente na economia mundial. Diversas economias do leste asiático exerceram um forte controle sobre os fluxos de investimento estrangeiro direto e indireto, dependendo muito pouco dos empréstimos externos. O capital externo, ao entrar da República Popular da China, por exemplo, foi obrigado a aceitar uma regulação estatal implacável por meio de formação de empresas joint ventures com o Estado. China está conseguindo realizar a emulação de produtos, seu catching-up, a ampliação, a integração e a sofisticação de sua estrutura produtiva, por consequência, se desenvolvendo enquanto as economias latino-americanas, comandadas pela elite do atraso, optaram por uma inserção passiva, associada, dependentista e entreguista.
A cultura do privilégio, presente na América Latina, explica muito das diferenças de caminhos escolhidos ao comparar com algumas economias e sociedades do leste asiático. Ela se utiliza de um sistema patrimonial-clientelista do capitalismo politicamente orientado, que o desenvolvimentismo não conseguiu quebrar na região e nem mesmo a pressão da ideologia liberal, republicana e democrática está sendo capaz de romper.
A elite do atraso latino-americana não possui um sentimento nacionalista de fato. Ela pode até capturar os símbolos nacionais, como cores, hinos e bandeiras, para mobilizar grande parte das massas, estabelecendo uma estética particularista, entretanto, a luta dela é autocentrada, egoísta e narcisista. Não é uma luta de libertação nacional –há apoio e associação com o capital externo– ou de defesa de valores liberais, mas uma reação da perda ou até mesmo da mera ameaça de perda da cultura do privilégio. E, segundo Sakurai (2018, p. 53), "[g]roup narcissism leads people to fascism. An extreme form of group narcissism means malignant narcissism, which gives rise to a fanatical fascist politics, an extreme racialism".
O fascismo latino-americano da elite do atraso não é nacionalista, mas é entreguista, herodianista, dependentista e associado com o capital externo oriundo das economias centrais. O fascismo na América Latina cria um regime caricaturesco e tosco, "um regime cuja euforia se sustenta em uma propaganda capaz de magnificar tudo o que seja inútil e grotesco, pisoteando um povo faminto, explorado e oprimido" (Santos, 2018, p. 320).
Vários setores das forças armadas latino-americanas não são nacionalistas e republicanos, mas continuam, em grande medida, com a mesma dinâmica, lógica e consciência das guardas e dos jagunços da época dos coronéis, dos caudilhos e dos crioulos. Mesmo se há membros dentro das forças armadas provindos da "ralé estrutural", eles aprendem pelo habitus da cultura do privilégio que serão beneficiados, tendo algum acesso ao capital econômico, ao capital cultural e ao capital social, somente se associando a elite do atraso. Estudaram e foram treinados, massivamente, para fixar o viés inconsciente de quais vidas são consideradas descartáveis e quais vidas são sacrossantas, quais países são civilizados e quais são bárbaros, quais regimes político-econômicos são modelos e quais são ameaças.
A elite do atraso latino-americana, em sua maioria, prefere a desordem de instabilidade política, econômica e social que um golpe de Estado possa ocasionar –aliás, com o passar da história vários setores da elite do atraso aprenderam como lucrar com a desordem– do que a ordem socialmente pactuada que o fim da cultura do privilégio ajudaria a proporcionar. Não há, na generalidade, das elites dirigentes da América Latina consciência e busca pela libertação nacional, rompendo com a dominação-dependência da região.
Salienta-se, ademais, que muitos dos partidos políticos e instituições sociais conservadoras-liberais, na América Latina, não incentivam um maior entendimento das origens das disparidades sociais, econômicas e culturais na sociedade latino-americana. Elas, de fato, costumam propagar estereótipos predominantes tanto para elite dirigente quanto para o resto da população. Assim, os conservadores-liberais, na região, não defendem ou protegem a livre-iniciativa, a competição, a concorrência, a democracia e a meritocracia de fato. Eles zelam e intercedem pela cultura do privilégio. Essa faz com que na América Latina, haja uma democracia e uma meritocracia em que a maioria da população está excluída da competição, da concorrência e da participação, usando as categorias de análises para democracia de Dahl (1997). Quem é realmente liberal não defenderia este modelo onde certos grupos de pessoas são barrados, desqualificados e boicotados de competição, de participação e de concorrência justas.
No entanto, na América Latina quando a elite do atraso, inclusive vários setores que se auto intitulam liberais, sente que a cultura do privilégio está em ameaça, ela reage de forma violenta e fascista. Não pode haver a democratização do capital econômico, do capital social e do capital cultural. O governo que se excursiona e se orienta nesta perspectiva sofre pressão da elite do atraso. Por isso que a região vivencia tantos golpes de Estado violentos, autoritários, reacionários e em nome da ordem, da tradição e da família. A ordem defendida é o da cultura do privilégio com seu castismo tácito, a tradição é presente nas regras, nas diretrizes e nos protocolos da cultura do privilégio, a família é os seus e os próximos aos seus, não é sociedade local como um todo e muito menos a nação.
O impedimento de reformas estruturais capazes de democratizar os capitais faz com que, para melhorar a situação da população marginalizada bem como para impulsionar o desenvolvimento econômico, os governos defensores do Estado desenvolvimentista –vanguardistas e latino-americanistas– optem, mais cedo ou mais tarde, em adotar o populismo econômico de esquerda, uma vez que não conseguem concretizar as reformas de base. A cultura do privilégio, assim, também está no alicerce do horror econômico.
São em virtude da cultura do privilégio e da carência de uma cultura republicana, democrática, desenvolvimentista e vanguardista presentes na elite do atraso latino-americana que são entreguistas, sofrendo do herodianismo, que as políticas econômicas estruturais não avançam. Isso obriga o Estado desenvolvimentista a procurarem soluções muitas vezes populistas de esquerda tentando orquestrar interesses divergentes.
Para Dornbusch e Edwards (1991), o populismo econômico latino-americano de esquerda nasce da necessidade do governante de atentar às contradições existentes dentro do seu arranjo de forças sociais que dão alicerce ao seu governo. O mandatário –comprometido com pautas vanguardistas e desenvolvimentistas na América Latina– ao receber apoio tanto de setores mais liberais, de grupos do funcionalismo público, de movimentos sociais, dos trabalhadores, de elites tradicionais quanto de populares em geral teria, inevitavelmente, dificuldades para efetivação de políticas públicas que atendessem a demanda da nação ao mesmo tempo em que se mantêm os privilégios, o aparelhamento, a naturalização da diferença como desigualdade e a reprodução das desigualdades por meio de estruturas e de instituições sociais. Tal estrutura social-política-econômica leva o governo vanguardista e desenvolvimentista a adotar medidas econômicas pouco sustentáveis em longo prazo, gerando um crescimento no estilo stop and go.
Para que o Estado desenvolvimentista latino-americano seja edificado com intervencionismo econômico, política industrial, mecanismos de gerenciamento, de controle, de reciprocidade e outros aspectos técnico-econômicos, é preciso que, primeiramente, haja um reformismo forte na sociedade e na política da região. É preciso superar o horror social da cultura do privilégio. Isso só ocorrerá com reformas estruturais (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe, 2018a) e/ou com um reformismo forte (Singer, 2012).
Para Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (2018a), uma das principais reformas estruturais que auxiliaria em quebrar a cultura do privilégio na América Latina e promover a ampliação, a integração e a sofisticação da estrutura produtiva seria a adoção de políticas sociais, educacionais e redistributivas ao mesmo tempo em que o Estado realiza reformas urbanas, agrárias e tributárias, por exemplo. A Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (2018a) enfatiza a questão do sistema tributário latino-americano que apresenta uma carga tributária indireta e regressiva, recaindo sobre o consumo e atingindo mais fortemente a classe média e pobre. Os países da região têm baixa tributação sobre renda e patrimônio e alta cobrança via consumo. A carga tributária média dos países latino-americanos é a metade da média de um conjunto de quinze países da União Europeia. Na região, a taxa efetiva de carga tributária sobre a renda do decil X alcançou 4.8% em 2014, em contraste com uma média de 21.3% nos quinze membros da União Europeia avaliados (ocde, 2016).
Para Singer (2012), o reformismo forte passa necessariamente por mudanças profundas como: a) conflito do capital –tributação de fortunas e regulação do mercado financeiro–; b) revisão das privatizações; c) redução da jornada de trabalho; d) desapropriação de latifúndios; e) negociação de preços por meio dos fóruns das cadeias produtivas; f) diminuição da jornada de trabalho; g) criação de comitês gestores populares e h) aumento real do salário mínimo.
Além dessas reformas de base, Souza (2018) enfatiza que é necessário criar condições para novos aprendizados sociais e políticos capazes de enfrentarem a cultura do privilégio com todos seus sintomas, inclusive o entreguismo e o herodianismo. Para combater a cultura do privilégio Souza apregoa:
Nosso atraso real foi nunca ter realizado os aprendizados sociais e políticos que conduziram em outros lugares a sociedades mais justas e igualitárias, sem "subgente" e vidas abandonadas e esquecidas jogadas no lixo do desprezo e da humilhação cotidiana. É isso que faz com que nossa modernidade seja seletiva, excludente e doente. Para que possamos realizar esses aprendizados sociais concretos, no entanto, precisamos mudar a percepção que temos de nós mesmos e de nossa sociedade. [...] Uma sociedade se transforma quando a percebemos de modo mais verdadeiro e crítico (Souza, 2018, p. 272).
De acordo com Sunkel (2006), somente um modelo sociocentrico de desenvolvimento econômico seria capaz de lidar com os traumas e os históricos da América Latina, como a cultura do privilégio. Este artigo concorda com Sunkel (2006), pois se no centro dos fracassos dos projetos desenvolvimentistas latino-americanos está um horror social, isto é, a cultura do privilégio, o remédio, também, passa pelos movimentos e organizações sociais com apoio do Estado desenvolvimentista vanguardistas. Nas palavras de Sunkel:
La cuestión central actual me parece, por ello, la elaboración y aplicación de una concepción sociocéntrica del desarrollo. [...] Ha ido adquiriendo en ese proceso nuevas formas de articulación y de acción mancomunada, particularmente entre sus segmentos tradicionalmente postergados o marginados, como los étnicos, de género, etarios y de las regiones y comunidades locales, así como en función de nuevas demandas ambientales, de transparencia administrativa, de derechos del consumidor y derechos humanos, que se constituyeron en nuevos actores sociales no tradicionales. Se trata, entonces, de poner al Estado y al mercado al servicio de la sociedad civil (Sunkel, 2006, p. 484)
Infere-se que para compreender a perpetuação do subdesenvolvimentismo na América Latina é preciso ter o entendimento da cultura do privilégio –horror social– que está no âmago da sociedade latino-americana, mormente em grande parcela da elite dirigente. Essa carrega introjetada um desprezo pelo seu próprio povo –visto como "subgente"– e um fascínio e subalternidade perante o colonizador –economias centrais– visto como modelos de humanos e de civilização. Há praticamente na América Latina uma "castismo tácito", mantido por uma sociopatologia que é a cultura do privilégio responsável pelo fracasso de projetos econômicos e políticos desenvolvimentistas na região. O alicerce do horror, portanto, não é a política e tampouco a economia, mas um horror social validado por uma superestrutura ideológica típica de sociedades que padeceram perante a invasão, a colonização de exploração, a dizimação dos povos originários, a escravidão e a transplantação cultural. Para superá-lo é preciso um projeto desenvolvimentista sociocêntrico.
Considerações finais
Por meio de pesquisa de revisão bibliográfica pautada em leitura sintópica, focando em autores renomados e atuais, em estudos e dados de instituições e de organizações reconhecidas internacionalmente, com uso de sociologia concreta e sociologia analítica; o texto foi capaz de edificar uma lógica argumentativa, conceitual e teórica, dentro das ciências sociais, eficiente para demonstrar que o cerne do entrave para a superação do subdesenvolvimento da América Latina é, especialmente, a cultura do privilégio.
É óbvio que a cultura do privilégio não explica totalmente o subdesenvolvimentismo das sociedades latino-americanas. Entretanto, ficou evidente que nenhum aspecto da dinâmica social, econômica e cultural dos latino-americanos pode ser plenamente compreendido sem que se considere a cultura do privilégio. Isso faz com que a premissa elencada pela pesquisa seja considerada uma forte hipótese a ser verificada de forma mais empírica.
A herança maldita do processo de invasão, de conquista e de colonização da América Latina, portanto, é a cultura do privilégio e não o patrimonialismo-clientelista, a corrupção ou o populismo econômico de esquerda. A cultura do privilégio –como base– o estamento-burocrático com o patrimonialismo-clientelista, a corrupção e o populismo fascista –como meios– para mantê-la, faz com que qualquer reforma estrutural forte com o escopo de aprofundar o Estado desenvolvimentista seja truncada na América Latina.
Contudo, diferentemente do que apregoa a maioria dos cientistas políticos e economistas liberais, a solução para superar o subdesenvolvimentismo latino-americano não passa pela diminuição do Estado ou pela rejeição da política e do político. Pelo contrário, a política, o político e o Estado não são os problemas da questão, mas são os principais dispositivos, instrumentos e engrenagens para a construção de uma cultura democrática, desenvolvimentista, vanguardista, sociocêntrica capaz de combater a cultura do privilégio, adotando um reformismo forte na América Latina.
Os projetos de desenvolvimento econômico latino-americano precisam afrontar a cultura do privilégio, o horror social da região. A tarefa consiste em descolonizar a mentalidade da elite do atraso, que mantém com ciclo civilizatório incompleto. O que ela chama de paz social, democracia social, ordem etc. nada mais é do que o silêncio dos explorados. O que a elite do atraso chama de desenvolvimento econômico é a qualidade de seu nível de consumo, não uma sociedade com empregos qualificados, com renda-alta e com Estado de bem-estar social solidificado.
O que a América Latina vive na atualidade é resultado do que aconteceu no passado. Viver sem conhecer o passado é viver no escuro. É preciso que os governos da região incentivem a autoanálise de seus povos, adotando políticas educacionais de valores locais. Nenhum latino-americano atualmente é responsável pela origem da cultura do privilégio, ele a herdou. No entanto, todos que fazem parte da elite dirigente colhem os benefícios dela e tem o dever de lutar para modificar isso. É necessário pressionar os Estados para democratizarem cada vez mais o capital econômico, o capital social e, fundamentalmente, o capital cultural. Desenvolvimento sem investimento em educação e sem acesso ao capital cultural é criação de riquezas apenas para alguns privilegiados.
Resumo
Main Text
Introdução
Desenvolvimento econômico: uma breve apresentação conceitual
Cultura do privilégio: entendendo o conceito
Cultura do privilégio: horror social e entrave desenvolvimentista na América Latina
Considerações finais