Introdução
O nosso principal objetivo é apresentar a dinâmica das estruturas do mercado de
trabalho brasileiro entre 1980 e 2010 a partir do conceito de subemprego apresentado
por (Rodríguez, 1985).1 Para tanto, nosso trabalho articula duas dimensões
complementares, de um lado, apontamos uma histórica da economia brasileira, centrada
nas relações entre o mercado interno e a estrutura produtiva e, de outro lado,
apresentamos uma análise qualitativa do mercado de trabalho brasileiro com base em
dados extraídos dos censos demográficos, sendo que esta parte é acompanhada de uma
explicação metodológica.
Primeiramente, destacamos aspectos históricos importantes para se compreender a
erosão da estrutura produtiva brasileira e da estrutura de ocupações, que atualmente
é penalizada por uma desindustrialização aliada de uma especialização
regressiva.2 Embora a
financeirização e o neoliberalismo sejam fundamentais para se compreender os espaços
que se fecharam à política econômica, como normalmente é destacado na literatura
econômica, destacaremos aqui os nexos internos da estrutura da economia brasileira
que contribuíram para a consolidação do mercado de trabalho tal como ele se
apresenta atualmente. Nesse sentido, estabeleceremos algumas relações entre a
industrialização dependente, a expansão da empresa agromercantil e a formação de um
mercado interno incapaz de sustentar um processo de desenvolvimento nacional3 –nas palavras de (Furtado, 1972, pp. 65-66), a economia
brasileira não criou mecanismos que pudessem formar um anel de
feed-back.
As deformações típicas de uma estrutura produtiva subdesenvolvida, que se singulariza
pela heterogeneidade, preservaram uma grande quantidade de ocupações de baixa
produtividade em variados setores da economia, como na construção civil e na
agricultura de subsistência. Assim, a estrutura ocupacional brasileira se modernizou
sem perder o que possuía de mais arcaico, que é precisamente a existência de uma
grande massa de atividades de baixa produtividade que estão disseminadas tanto nos
setores secundário e terciário como no setor agrícola, que ainda se configura como
um reservatório de mão de obra para as atividades não-agrícolas.
Embora estes não sejam elementos novos na análise da economia brasileira, os mesmos
costumam ser negligenciados nas análises sobre a evolução do mercado de trabalho e
da economia brasileira na década de 2000. As análises sobre este período, comumente
celebrado pelas suas melhorias conjunturais, como o foram o aumento da formalização
das relações de trabalho e a elevação real do salário mínimo,4 não destacam com a devida atenção a possibilidade
aberta de reversão desses processos.5 Sem a exata noção de que a superação substantiva da
precariedade do mercado de trabalho requer a superação de entraves estruturais de
nossa economia, a explicação da rapidez com que esses mesmos avanços refluem desde
2015 tende a ser resumida a erros de política econômica. Tal tratamento esvazia a
natureza do problema, que não se resume a questões de política econômica nem a
determinações domésticas –caso contrário, como explicar o atual retrocesso econômico
e social que se alastra não só a países subdesenvolvidos como também a países
desenvolvidos?
Em segundo lugar, nossa análise da estrutura ocupacional no período 1980-2010 destaca
a relação entre as atividades agrícolas e não-agrícolas. Neste sentido, é importante
também destacar que a metodologia de que nos valemos, desenvolvida por Rodríguez (1985), articula a estrutura e a
dinâmica das ocupações agrícolas e não-agrícolas através da ideia de subemprego, que
é definida, basicamente, a partir da baixa produtividade do trabalho de uma
determinada atividade econômica.6
Para evidenciar nossa contribuição ao debate sobre a deterioração do mercado de
trabalho brasileiro, este artigo contém, além desta introdução, outras duas seções
mais as considerações finais. Na primeira seção, apresentamos uma interpretação
sobre a formação econômica brasileira com o intuito de lançar luz sobre as
limitações que a expansão da lavoura agromercantil impôs à industrialização por
substituição de importações. Depois, analisamos o mercado de trabalho dentro de uma
perspectiva de longo prazo a partir do conceito de subemprego formulado por Rodríguez (1985), destacando o período que vai
de 1980 a 2010. Além disso, esta última seção apresenta sucintamente a metodologia
utilizada, cujos critérios divergem consideravelmente dos critérios que balizam a
metodologia tradicional, baseada na dicotomia entre empregos formais e
informais.
Industrialização dependente e empresa agromercantil
A despeito de uma complexa estrutura industrial construída em meados do século
xx, a economia brasileira elevou os seus graus de heterogeneidade.
Antes de estabelecer os nexos entre produção e consumo que associariam a acumulação
de capital ao atendimento das necessidades da maior parte de sua população, o padrão
de acumulação praticado no Brasil preservou um baixíssimo nível tradicional de vida
mesmo nos períodos de crescimento mais intenso do mercado interno. Na medida em que
a demanda se entrava constantemente abaixo do seu potencial, preservando o país sob
uma baixa renda per capita, como Celso Furtado salientou incontáveis vezes,
bloqueou-se os canais pelos quais se poderia construir um crescimento
auto-sustentado.
Todavia, a análise dos nexos precários entre produção e consumo ganha maior
inteligibilidade quando se apresenta algumas características da atuação das
burguesias brasileiras e do capital externo no processo brasileiro de
industrialização por substituição de importações, o qual se passou, em linhas
gerais, entre 1930 e 1980.
Em meados do século passado, aproveitando-se de conjunturas internacionais em que se
afrouxou o controle sobre as economias primário-exportadoras, emergiram estratégias
para a superação de barreiras externas à acumulação de capital. Durante a segunda
guerra mundial, por exemplo, uma parcela da burguesia se aproveitou para
diversificar a estrutura industrial como estratégia para se mitigar o
estrangulamento cambial e financeiro –mais precisamente, deu-se início à primeira
fase da industrialização por substituição de importações, que usualmente é datada
entre 1930 e 1956.7 Todavia, este
impulso à atividade industrial no Brasil não se constituiu única e exclusivamente
como uma investida de um demiúrgico capital nacional. Ainda que parte da burguesia
brasileira tenha participado ativamente dos primeiros e fundamentais passos na
construção de um sistema econômico, sobretudo na formação dos setores de bens
intermediários, a participação do capital internacional na produção de produtos
finais acentuou-se a partir da década de 1950. Este momento representou o início de
uma nova etapa da dependência externa, caracterizada por um controle direto da
produção, que se expressou na abertura de inúmeras filiais.8 Com o fito de avançar sobre a
conquista de nosso espaço econômico, estes capitais expandiram
seu domínio a todo empreendimento que lhes pudesse render lucro, sobretudo nos
“postos-chave e de significação econômica decisiva” (Prado Jr., 2012, p. 323), o que se fazia sem maiores comprometimentos
com o desenvolvimento nacional.9
De tal modo, a atuação do capital internacional nos mercados periféricos obedecia a
dois princípios norteadores. Em primeiro lugar, a sua contribuição para o
desenvolvimento capitalista em alguns poucos países selecionados era parte de sua
política de combate ao comunismo, que àquela época ameaçava a hegemonia do
capitalismo como modelo de organização sociocultural, econômica e política. Por
outro lado, a abertura de filiais das grandes empresas financeiras e não-financeiras
garantia o controle direto sobre a industrialização periférica. Neste novo modelo de
dominação externa, portanto, o capital internacional passou a possuir uma outra
estratégia de intervenção. Ao invés de imposições comerciais, como atuara até então,
passou a fixar desde dentro das fronteiras nacionais as normas, o ritmo e os limites
do desenvolvimento capitalista, os quais eram determinados pelas divisas obtidas
através do endividamento externo e dos saldos exportadores dos setores primários.
Disso, nota-se que a modernização acelerada da economia brasileira se desenrolou sem
que fossem superadas algumas das características de uma economia tipicamente
colonial, como a elevada concentração fundiária e a dependência dos setores
primários para a obtenção de divisas. Sem autonomia financeira e tecnológica, o
processo substitutivo não adquiriu, nem mesmo sob o impulso do II Plano Nacional de
Desenvolvimento (II pnd), condições para projetar com força a sua estrutura
urbano-industrial sobre o mercado externo, evidenciando a acomodação entre os
interesses externos e os interesses das camadas mais tradicionais da burguesia
brasileira –essa relação entre os interesses externos e internos foi denominada por
Florestan Fernandes (2006) como uma dupla
articulação.
Conservada a primazia exportadora da empresa agromercantil, que no seu processo de
expansão expulsava grande quantidade de trabalhadores para os centros urbanos,
garantia-se que o consumo dos bens de consumo durável fossem um privilégio dos ricos
e da pequena classe média. De outro modo, a urbanização baseada na absorção de
milhares de trabalhadores rurais que não foram absorvidos pela indústria nem pelos
serviços modernos induziu a formação de uma economia de baixos salários, o que
limitava o tamanho do mercado consumidor e da produção nacional. Assim, a expansão
da indústria possuía um limite intrínseco, pois ao mesmo tempo em que a estratégia
de desenvolvimento urbano-industrial estava dependia no crescimento do mercado
interno, o mesmo se encontrava limitado por uma brutal concentração da renda. Não
foi por outra razão que Caio Prado Jr. (1987)
afirmara que “o progresso material se anula em boa parte e se auto-limita,
encerrando-se em estreitas perspectivas” (pp. 91-92). De tal modo, observa-se que
não estava no horizonte do processo substitutivo a integração da economia nem da
sociedade, o que se expressava sobre os milhões de trabalhadores
marginalizados.10 Concorria-se
para que, em conjunturas desfavoráveis, os investimentos se retraíssem sem que o
mercado interno pudesse funcionar como um retaguarda segura. Frágil, o modelo
brasileiro não estabeleceu os nexos entre produção e consumo que seriam tão
necessários para que a industrialização adquirisse autonomia, o que significa que a
modernização da economia seria necessariamente acompanhada pela preservação de
elevadas taxas de subemprego.
Esta nova forma de intervir nas economias periféricas, parte intrínseca daquele que
era o tempo histórico do imperialismo total,11 contribuiu para aprofundar a heterogeneidade
estrutural no país. Não apenas a construção de um sistema econômico como um conjunto
harmonicamente encadeado continuou paralisada como também as ocupações de maior
produtividade do trabalho ficaram restritas a poucos setores e ramos de atividade, o
que acirrou a dispersão das rendas do trabalho no país. Na medida em que o processo
substitutivo avançava, assim como também avançavam as lavouras comerciais sobre as
roças de subsistência, expulsando quantidade expressiva de trabalhadores rurais para
os centros urbanos, a remuneração das ocupações agrícolas e das ocupações
não-agrícolas menos valorizadas não encontravam condições para crescer. A massa de
trabalhadores urbanos ocupados em atividades de baixa produtividade, alimentada
fundamentalmente pelo êxodo rural, constituiu-se em uma formidável ferramenta para
preservar rebaixados os seu custos salariais, assim como as péssimas condições de
trabalho e remuneração do trabalhador rural minavam o poder de barganha do
trabalhador urbano. Segundo Prado Jr. (1987, p.
173)
o que associa de maneira mais íntima trabalhadores da cidade e do campo é a
circunstância de que a solução dos problemas essenciais de todos e o
atendimento de suas reivindicações se confundem afinal num mesmo processo,
que se pode comparar à tendência ao nivelamento dos líquidos em vasos
comunicantes. Se as melhores condições de trabalho e emprego nos centros
urbanos constituem, pela concorrência que determinam no mercado comum de mão
de obra, a principal, senão única circunstância capaz de elevar o poder de
barganha dos trabalhadores rurais, doutro lado os baixos padrões dominantes
no campo constituem dos principais fatores de depressão dos salários e
agravamento das condições de emprego do trabalhador urbano. A massa
trabalhadora rural se apresenta no Brasil como uma reserva permanente de mão
de obra pouco exigente, sempre disposta a afluir para a cidade e aí se
oferecer em condições mais favoráveis para os empregadores. Concorre assim
muito seriamente com o trabalhador urbano, e tende por isso a lhe
neutralizar as exigências.
As mudanças por que passava o mercado de trabalho devem ser compreendidas, portanto,
à luz das transformações que se passaram no campo em articulação ao que se passava
nos centros urbanos do país. A expansão da fronteira agrícola, amparada pelo Estado
e fundamentada na concentração fundiária (Oliveira,
2003; Szmrecsányi, 1982),
continuamente alimentou a demanda de trabalho nas atividades não-agrícolas, onde a
precariedade das condições de vida e trabalho era, sob outras formas, análoga à do
campo. A conexão entre os trabalhadores urbanos e os trabalhadores rurais, assim
como entre as suas respectivas condições de trabalho, conectou e estabeleceu o campo
e a cidade como uma unidade que determinou a taxa de salários de toda a
economia.
A rigidez da estrutura social foi um elemento essencial, portanto, para definir o
alcance da industrialização por substituição de importações. Em momento algum o
processo substitutivo se constituiu como “um processo contínuo e autoestimulante,
alimentando-se de suas próprias forças e propagando-se por elas” (Prado Jr., 2012, p. 332), que é uma das
principais características de um processo de industrialização autônomo.
Fundamentalmente direcionada para suprir a demanda final de uma pequena parcela da
população, não se constituiu no Brasil mais do que uma estrutura produtiva
fragmentada, sobretudo porque não se adquiriu autonomia tecnológica nem se conseguiu
avançar satisfatoriamente no setor de bens capital. Nem mesmo a grande expansão da
produção de bens duráveis, na década de 1970, que de fato aliviou a pressão sobre as
contas externas, foi capaz de extrapolar as fronteiras do país e de transformar a
indústria brasileira em uma plataforma de exportações. Afinal, o investimento direto
externo foi baseado na instalação de máquinas e equipamentos já completamente
amortizados e defasados, pois, em relação às máquinas e equipamentos que as mesmas
empresas usavam nos países industrializados (Furtado, 1980).
Prado Jr. (2012, pp. 323-324) chegou mesmo a
afirmar que o desenvolvimento econômico no Brasil se assemelhou mais a um breve
surto de atividades econômicas condicionado por uma conjuntura internacional
excepcional do que a um genuíno processo de desenvolvimento nacional –e aqui é
importante destacar que o autor tinha em mente um processo histórico de longa
duração, e não os tempos mais curtos das conjunturas econômicas que podem durar
algumas décadas. A despeito de todo o esforço industrial, o que se verificou no mais
das vezes foi uma substituição de bens de consumo durável que dependia das relações
estabelecidas pelas matrizes para que as filiais se abastecessem de insumos.12 Nesse sentido, a estrutura
industrial no Brasil deixou de adquirir a conexão que caracteriza as
industrializações que ocorreram com grau elevado de autonomia. Ao longo de todo o
período, o desenvolvimento das forças produtivas no país constituiu-se basicamente
da instalação de elos de cadeias produtivas que permitiram um melhor aproveitamento
da exploração dos mercados locais na medida em que se reduziram custos trabalhistas,
alfandegários e outros custos relativos ao transporte. Parte substantiva do
excedente que se produziu foi desviada para a acumulação ao nível dos bens finais de
consumo sem que ao menos fosse perseguida uma articulação mais coerente entre essas
mesmas atividades industriais13 --
Furtado (1972, p. 81) sintetizou este
fenômeno como o de uma modernização dos padrões de consumo.
Em suma, a industrialização dependente preservou uma enorme superpopulação relativa.
De um lado, o controle externo preservou o subdesenvolvimento da estrutura
produtiva. De outro, a atuação da burguesia brasileira na definição da política
econômica garantiu-lhe acesso privilegiado ao excedente produzido internamente, o
que, naquele contexto de intenso êxodo rural, significou a preservação de um
sem-número de subempregados.
Mercado de trabalho
Nesta seção, portanto, daremos continuidade à análise precedente, que nos serve como
um referencial teórico e histórico para o exame da dinâmica da economia brasileira
entre 1980 e 2010 a partir da análise do mercado de trabalho baseada no conceito de
subemprego. Esta passagem, no entanto, não pode ser realizada sem maiores mediações,
o que ocorre por duas razões. Primeiramente, entendemos que o significado que
normalmente é atribuído ao termo subemprego é diferente daquele que pretendemos
transmitir, o que exige uma breve nota. Por sua vez, a análise empírica não pode
transcorrer sem uma apresentação sucinta dos critérios que compõem a metodologia de
Rodríguez (1985), dado que são muito
poucos os trabalhos publicados que a utilizaram.
Definição histórica de subemprego e dinâmica da economia brasileira
(1980-2010)
A primeira formulação de subemprego como categoria analítica foi elaborada por Robinson (1937) no contexto da Grande Recessão,
quando o desemprego nas economias centrais disparou. Para ela, este seria um sintoma
de estagnação econômica por que os países desenvolvidos atravessavam, sendo que a
sua superação deveria ser perseguida pelo Estado através de políticas que
estimulassem a demanda efetiva com vistas ao pleno emprego. Assim, seriam criadas
novas vagas ao mesmo tempo em que se desenvolveriam mecanismos que estimulassem um
melhor aproveitamento daquelas já existentes, o que elevaria a massa de salários e
estimularia, pois, o crescimento econômico. De outro modo, as políticas em questão
deveriam não só reduzir o desemprego aberto como também deveriam estimular o aumento
de produtividade de atividades que se caracterizava com formas disfarçadas de
desemprego, que foram caracterizadas por Robinson
(1937) como subempregos.
Todavia, um país como o Brasil nunca possuiu condições técnicas, financeiras e
político-sociais que permitissem trazer a patamares residuais tanto o nível quanto a
participação das ocupações de baixa produtividade. Mesmo no auge do processo
substitutivo não se internalizou o controle sobre o progresso técnico nem se
transformou as indústrias de alta intensidade de capital em plataforma de exportação
de produtos,14 sendo que os setores
primários preservaram participação considerável na pauta de exportações, o que
preservou a ampliação da fronteira agrícola. De outro modo, o que se diz aqui é que
a estrutura produtiva brasileira, apesar de propiciar uma elevação significativa da
participação de ocupações de elevada produtividade do trabalho, houve um acréscimo
não desprezível do número de subempregados ao longo de todo o processo de
modernização. De tal modo, o subemprego não apenas não foi superado como, na
verdade, se prolongado no tempo como um fenômeno normal, o que evidenciaria uma
distância enorme entre a realidade dos países desenvolvidos, possuidores de uma
estrutura industrial relativamente autônoma e fortemente encadeada, e a realidade
dos países latino-americanos (Hobsbawm,
1969). Nas formações periféricas, portanto, as atividades de baixa
produtividade não expressam períodos de estagnação, como sucedeu na Europa Ocidental
e nos Estados Unidos, nos anos 1930. Embora a industrialização tenha sido intensa
nos países latino-americanos, sobretudo no Brasil, a elevada proporção de
subempregados que persistiu ao processo substitutivo não autorizaria que a sua
existência fosse confundida com um fenômeno transitório.15 Na periferia, parte muito grande dos
subempregados e dos desempregados nunca foi considerada uma reserva de trabalho em
potencial pelas atividades de alta produtividade. Aqui, boa parte da mão de obra
subempregada nunca esteve ocupada em uma atividade de produtividade mais elevada, o
que desautorizaria qualquer opinião que confunda o subemprego como um desemprego
disfarçado. Para uma massa enorme de trabalhadores, a ideia de retorno a uma
atividade de elevada produtividade do trabalho –o que daqui em diante
identificaremos simplesmente como emprego– nunca existiu. A
industrialização dependente não apenas preservou a heterogeneidade da estrutura
produtiva como tampouco incorporou a massa da população trabalhadora como
consumidora dos bens finais mais sofisticados (Furtado, 1972, pp. 51-52). A despeito da participação do subemprego na
população ocupada ter caído significativamente, o seu nível absoluto continuou e
ainda continua bastante elevado, o que representa, por si só, um agravamento das
possibilidades de homogeneização da estrutura ocupacional no Brasil.
O subdesenvolvimento não foi subvertido pela introdução e expansão da moderna
indústria. Embora as forças produtivas tenham crescido de modo significativo, o seu
potencial foi limitado pela preservação de uma grande população ocupada em
atividades de baixa produtividade e que pagam baixos salários,16 como já salientamos acima. De outro modo, a
reprodução em escala ampliada do subemprego, que reduzia o potencial da demanda,
impediu uma dinamização mais intensa da economia. A não-incorporação de parte
importante da população às atividades modernas inviabilizou qualquer movimento de
homogeneização social, o que significa que boa parte desta mesma população continuou
socialmente segregada dos meios de classificação e valorização social, como é o
acesso a uma ocupação de média ou alta produtividade. Mesmo no período mais sólido
de progresso material no país, que na nossa avaliação é capturado pelos dados
referentes ao ano de 1980, a participação das ocupações de baixa produtividade
abrangia uma porção significativa da população ocupada, chegando a pouco menos de
30% do total, como exposto na subseção “Emprego, Subemprego e Desemprego
(1980-2010)” deste artigo.
Como consequência da deterioração do parque industrial e das finanças do país, o que
teria se iniciado de forma mais pronunciada nos anos 1980 e se prolongado nas
décadas posteriores, foram exacerbados os mecanismos de crescimento das atividades
de baixa produtividade. De um lado, a indústria urbana se enfraqueceu de forma
profunda, sobretudo após o declínio da URSS, que acelerou a reorganização da
produção em âmbito internacional. No Brasil, este processo se manifestou, sobretudo
nos anos 1990, sob a forma de uma desindustrialização, que se caracterizou
a) pela perda de elos da cadeia produtiva, principalmente nos
setores intermediários e intensivos em tecnologia e capital; b)
pela erosão dos centros internos de decisão, e c) pelo deslocamento
do eixo dinâmico da economia para o exterior (Espósito, 2016, pp. 62-73). De outro lado, o agronegócio avançou
rapidamente, retomando um espaço que perdera havia já várias décadas, selando o que
(Coutinho, 1997) denominou de
especialização regressiva.
Tal movimento revigorou o subemprego, que nas últimas décadas alcançou um nível
muitas vezes mais elevado do que em meados do século passado. Ou seja, o desafio de
civilizar o mercado de trabalho brasileiro tornou-se ainda maior, sendo três,
basicamente, as suas razões econômicas: a) a situação
crescentemente decadente da estrutura produtiva brasileira; b) o
novo dimensionamento assumido pela dependência financeira, e c) o
aumento do nível de trabalhadores sem ocupação ou ocupados em atividades de baixa
produtividade. O desafio social que se impõe, portanto, à expansão da economia e às
políticas de geração de renda e emprego são ainda maiores que no passado.
A deterioração das forças produtivas que se desenrola há mais de três decênios e que
revitalizou as atividades primárias, como a mineração, a agricultura e a
pecuária,17 inviabiliza
qualquer movimento mais consistente de melhora da estrutura ocupacional no Brasil. A
perda de importância da indústria como geradora de postos de trabalho e a expansão
da fronteira agrícola atuam conjuntamente para a deterioração da estrutura
ocupacional e dos salários. O momento atual reafirma as atividades agrícolas e
não-agrícolas como vasos comunicantes, embora o conjunto das migrações rural-urbanas
seja muito menor que no passado. Mas aqui é preciso fazer uma ponderação importante.
Em 2010, a população rural ultrapassava os 30 000 000 de pessoas, sendo que o
subemprego rural era de aproximadamente 18 000 000 de pessoas. Esses números indicam
que o campo brasileiro ainda se constitui como um importante reservatório de mão de
obra para as atividades não-agrícolas, embora o seu fluxo migratório atual e o
impacto socioeconômico não esteja mais tão concentrado nos grandes centros urbanos.
Assim, os pequenos centros urbanos e as zonas rurais urbanizadas18 são hoje mais afetados nas suas condições de
vida e trabalho pela expansão da fronteira agrícola, o que continua a impactar
negativa e indiretamente os grandes centros urbanos.19
Mas antes de avançarmos em nossa análise sobre o mercado de trabalho baseado no
subemprego, é necessário apresentar os critérios que guiam a nossa metodologia bem
como alguns contrapontos à dicotomização das ocupações entre emprego formal e
informal.
Nota metodológica
A despeito das diferenças entre a metodologia tradicional –que analisa o mercado de
trabalho com base nas categorias trabalho formal e informal– e a metodologia que
utilizamos para mensurar o subemprego, existem algumas características comuns. Uma
delas, em particular, nos interessa nesta breve exposição: ambas as pesquisas partem
do princípio de que a heterogeneidade econômica e, pois, a heterogeneidade do
mercado de trabalho pode ser percebida através da captação da produtividade do
trabalho.
A construção da metodologia tradicional originou-se a partir de um documento
publicado pela International Labour Office
(1972). Neste trabalho, que analisava as causas e a dinâmica da
heterogeneidade da economia queniana, procurou-se identificar as características
principais das ocupações encontradas fora da moderna empresa capitalista, o que
formaria aquilo que se denominou de setor informal e que depois
seria disseminado em outros programas da Organização das Nações Unidas.20 No âmbito da discussão
latino-americana, o Programa Regional de Emprego para América Latina e Caribe
cumpriu não só o papel de difundir o termo na região através de trabalhos como os de
Tokman y Souza (1976) e Tokman (1978) como também avançou na formulação
de um marco conceitual.21 Nesse
sentido, inseriu elementos que elevaram a sua precisão, sendo que um deles foi a
identificação do setor informal com os estabelecimentos não-organizados, que eram
destacados por Souza (1980, 1999) como estabelecimentos não tipicamente
capitalista. Dentro de um espectro bastante heterogêneo, o setor informal
compreendia desde as ocupações urbanas por conta própria que praticamente só
contavam com o esforço físico do possuidor da força de trabalho até empresas com
maior coeficiente técnico que perseguiam uma renda média que, mediante ajustes
frequentes, remuneraria o capital e o trabalho. Em comum, esta gama variada de
unidades produtivas que comporia o setor informal da economia teria como
característica a incapacidade técnica ou tecnológica de reproduzir ampliadamente o
seu capital e, pois, não seria apta a arcar com as despesas legais previstas em lei,
o que contrastaria com o setor formal. Assim, essas novas resoluções eram captadas
mediante a existência ou não de um contrato formal de trabalho, que
se caracteriza pela exigência em se cumprir as leis trabalhistas. A inexistência
deste tipo de contrato, para fins estatísticos, identifica as ocupações
informais.
Todavia, é importante destacar ainda outras duas características que acompanham os
trabalhos realizados no âmbito do Programa Regional de Emprego para América Latina e
Caribe e que diferem consideravelmente da metodologia que defendemos neste trabalho.
Uma delas é que essas pesquisas centravam fortemente suas atenções nas atividades
não-agrícolas, o que, a despeito de algumas reformulações, gerou uma tradição que
analisa as ocupações agrícolas apartadas das demais.22 Tal procedimento omite um elemento importante para a
compreensão da totalidade econômica e, mais especificamente, da estrutura de
ocupações. Perde-se de vista que a reprodução das ocupações agrícolas e
não-agrícolas de baixa produtividade ocorrem dentro daquele sistema de “vasos
comunicantes” identificado por Prado Jr.
(1987), que caracterizou a fundação da economia moderna no país e que
permanece como elemento normal da organização econômica e social do país. Uma
segunda característica destas pesquisas, de natureza estatístico-metodológica,
residiria no critério usado para captar o objeto que se pretende apreender. Embora
estes problemas sejam parte mesmo da natureza dos trabalhos estatísticos, que mais
se aproximam do objeto do que o apreende em sua complexidade, o que problematizamos
é a variável selecionada para perceber a heterogeneidade do mercado de trabalho. A
posse da carteira de trabalho assinada não necessariamente corresponde a um trabalho
de elevada produtividade ou que a unidade produtiva busque ou pratique a reprodução
ampliada do capital, como é o caso dos trabalhadores e trabalhadoras domésticas que
têm a carteira assinada. No sentido inverso, várias ocupações de elevada
produtividade são realizadas à revelia da lei. Ambas estas situações, sobretudo a
primeira, que representa um universo bastante significativo de toda a população
ocupada, expressam um desvio do objetivo inicial da metodologia que não pode ser
desconsiderado. Em suma, embora a metodologia tradicional perceba o total de
ocupações protegidas pela legislação trabalhista, ela possui dificuldades flagrantes
para capturar o perfil da estrutura ocupacional como uma expressão do estágio do
(sub)desenvolvimento em que se encontra o país.
A metodologia elaborada por Octavio Rodríguez
(1985) e apresentada minuciosamente por (Portugal Jr. 1998, 2012), por sua vez, nos parece escapar dessas debilidades.23 Em primeiro lugar, ela agrega em
uma mesma dinâmica as atividades agrícolas e as atividades não-agrícolas. Mas não
menos importante é a perspectiva de longo prazo desta metodologia, que se constitui
em uma espécie de antídoto a hipóteses baseadas no curto prazo e que, por isso,
reduz as possibilidades de se cair na tentação de exagerar avanços conjunturais que
não encontram respaldo no movimento das estruturas econômicas. Partindo da concepção
de que o subemprego em países periféricos é um fenômeno de longa duração, ou pelo
menos de duração tão longa quanto a duração da articulação entre dependência externa
e subdesenvolvimento, as análises baseadas nesta metodologia não poderiam se limitar
a recortes temporais que expressam um período muito curto de tempo nem mesmo
conjunturas específicas, ainda que porventura estas possam ter uma extensão temporal
um pouco maior. Caso contrário, o exame do perfil e da evolução do subemprego como
expressão do subdesenvolvimento ficaria prejudicado e se perderia, eventualmente, a
sua principal característica, que é a percepção da sua permanência. Neste sentido,
destacamos que esta metodologia tampouco se poderia valer de critérios estatísticos
desafinados com a perspectiva de longo prazo, que obviamente difere do critério da
carteira assinada, que por motivos conjunturais pode apresentar um crescimento mesmo
em meio a processos de reversão da estrutura produtiva, como é o caso da conjuntura
recente em que houve uma elevação da participação de ocupações formalizadas em meio
a um contínuo processo de desindustrialização. Por isso, esta metodologia opta pela
captação da produtividade do trabalho das atividades agrícolas e não-agrícolas
através da renda do trabalho,24
dado que a renda proporcionada pelo produto do trabalho em uma economia mercantil
tende a expressar a dotação de capital da atividade em que o trabalho se encontra
empenhado.
Todavia, definir a renda do trabalho como critério básico de análise é problemático,
como enfatiza Hoffmann (1980, p. 62), pois a
“igualdade entre o salário e a produtividade marginal” nem sempre se verifica em
economias oligopolistas, como é o caso da economia brasileira. Para superar este
impasse, Rodríguez (1985) e Portugal Jr. (1998. 2012) propuseram que se avaliasse a renda do empregador do
estabelecimento como medida da produtividade da unidade produtividade, o que escapa
do constrangimento óbvio de se confundir a produtividade do trabalho com a renda dos
funcionários.
Além disso, é necessário definir um valor monetário que identifique uma linha
limítrofe entre as atividades de baixa e de alta produtividade, o que não se mostra
uma tarefa fácil, pois nem toda atividade estabelecida nos mercados de concorrência
perfeita, digamos, rende remuneração tão baixa –ou seja, além da renda do trabalho,
é necessário possuir outros instrumentos para captar ocupações que, pelas condições
de trabalho comumente abaixo daquilo que socialmente se estabelece como digno, não
classificam nem valorizam o possuidor da força de trabalho, o que caracterizaria
também um subemprego, ainda que a renda auferida não seja das mais baixas, como
seria o caso dos empregados e das empregadas domésticas.25 Esta medida se justifica pelo fato de que estas
ocupações são resquícios de uma abolição da escravidão que esteve e que ainda está
muito longe de esgotar todo o seu potencial construtivo (Fernandes, 2008a, 2008b), o que evidencia a reprodução do subdesenvolvimento e o subemprego
também desde um ponto de vista sociocultural.
Enfim, retomando mais de perto a discussão que identifica a renda do trabalho que
distingue as atividades de alta e de baixa produtividade do trabalho, Portugal Jr. (1998, 2012) salienta que a renda em questão teria que ser aquela
capaz de alterar significativamente as condições técnicas de produção –de outro
modo, a renda escolhida deve expressar uma quantia monetária que seja destinada
integralmente ao consumo. O próximo passo seria, então, o de inferir o valor
monetário da renda do trabalho, o que se obteve através de testes de sensibilidade
realizados com cortes de um e dois salários mínimos (Portugal Jr., 2012, p. 411). Dentro destes parâmetros, a renda de dois
salários mínimos foi identificada como o valor que se encaixava melhor ao critério
selecionado, o que significa que as rendas superiores a este valor se mostravam
factíveis com a possibilidade de se elevar a densidade de capital de um trabalhador
autônomo ou de uma unidade produtiva de pequeno porte. Ao mesmo tempo, buscou-se a
identificação de um valor monetário que não se deteriorasse no longo prazo,26 o que somente ocorreria no caso de
uma elevação real considerável tanto do nível médio dos salários como também do
nível do salário mínimo em um espaço temporal bastante dilatado –neste sentido,
entendemos não haver razões para reconsiderar a renda de dois salários mínimos como
critério básico da pesquisa, pois a elevação do salário mínimo real nos últimos anos
não apenas ocorreu dentro de um período relativamente curto (2005-2015), e que
parece ter os seus dias contados após a promulgação da emenda constitucional 95,
como tampouco alcançou valores mais consideráveis.27
Outro aspecto da pesquisa que é necessário elucidar corresponde às posições que os
trabalhadores classificados como subempregados e empregados ocupam na estrutura de
ocupações –afinal, nem todos aqueles identificados como empregados
trabalham para alguém. Alguns destes trabalhadores são autônomos ou
empregadores-empresários. E aqui cabe uma ressalva importante: como é impossível
verificar a renda auferida pelas empresas, a renda mensal média que se utiliza para
captar a produtividade do trabalho dessas unidades produtivas é a renda do
empregador, que não só expressa com maior acuidade a produtividade dos meios de
produção que se disponibiliza à força de trabalho ocupada como também representa uma
aproximação mais fiel da renda que pode ser empenhada na ampliação do capital.
Assim, a categoria empregados abrangeria os empregadores que
recebem uma remuneração mensal média acima de dois salários mínimos, os funcionários
destes empregadores e os ocupados por conta própria que auferem uma remuneração
média maior que dois salários mínimos por mês. De forma análoga, os
subempregados seriam representados pelos empregadores que
recebem até dois salários mínimos, pelos trabalhadores ocupados nestas unidades,
pelos trabalhadores autônomos que recebem até dois salários mínimos e, por
definição, pelos ocupados não remunerados e pelos empregados domésticos.28
Assim, se considerarmos que o objetivo de examinar a dinâmica e a estrutura do
mercado de trabalho é evidenciar o estágio do desenvolvimento, esse procedimento
impede que incorramos em equívocos como seria o de superestimar o
emprego, tal como o entendemos, na estrutura ocupacional.
Através destes expedientes procurou-se reduzir a deformação desta metodologia,
sobretudo porque uma das ocupações de maior peso isolado na população ocupada é
justamente a de serviços domésticos. Embora a garantia legal de direitos
trabalhistas seja importante, é necessário pontuar que a formalização de uma dada
atividade de baixa produtividade, e que mesmo assim costuma incorrer em uma série de
abusos por parte do empregador, a mesma não corresponde à eliminação de sua
reprodução.
Embora a metodologia que apresentamos também possua limitações, o que é da natureza
mesmo de um trabalho estatístico, como já afirmamos, entendemos que ela percebe
algumas das principais características socioeconômicas do subdesenvolvimento
latino-americano, que não pode ser resumida à dinâmica urbano-industrial. Ela
tampouco negligencia aspectos de nossa herança colonial que nos parecem fundametais
para a composição da estrutura ocupacional e, consequentemente, para o perfil da
demanda, que seria precisamente um dos aspectos mais importantes para a formação do
anel de feed-back tal como apontado por Furtado (1972). Pelo contrário, a metodologia desenvolvida por
Octavio Rodríguez e José Geraldo Portugal Jr. incorpora à análise da dinâmica
industrial a segregação social decorrente do passado escravista e a expulsão de
trabalhadores agrícolas como alguns dos fundamentos da dinâmica econômica e do
mercado de trabalho brasileiro. Por isso, na medida em que ela entende este
movimento como parte intrínseca de uma economia extremamente heterogênea que ainda é
dependente das finanças e da tecnologia originadas nos países centrais e
hegemônicos, os resultados obtidos são válidos como reflexo desta realidade
concreta. Diante do tamanho da população rural, imersa em relações sociais que
também são o resultado de séculos de escravidão, e do crescente papel que cumpre a
agricultura de exportação na dinâmica econômica do país, seria um erro desprezar
essa realidade como um fator de pressão sobre o perfil das estruturas de ocupações e
de remuneração.
Emprego, subemprego e desemprego (1980-2010)
Realizado o percurso metodológico, acreditamos já termos apresentado elementos
suficientes para permitir uma compreensão mais precisa da análise do mercado de
trabalho baseada na categoria de subemprego desenvolvida por Rodríguez (1985) e Portugal Jr.
(2012). Agora nos cumpre incorporar os números que dão base ao exame
estrutural da dimensão socioeconômica da economia brasileira.
Há uma inflexão evidente na economia brasileira a partir dos anos oitenta. A partir
da Crise da Dívida, as condições mais gerais da economia brasileira se deterioraram,
revertendo um fluxo que se iniciara nos anos 1930. Esse movimento nos leva a crer
que um olhar um pouco mais detido sobre os anos 1980 nos parece fundamental para se
compreender a nova orientação dada à economia brasileira, que a partir daquele
momento ingressou em uma trajetória de declínio estrutural acentuado. Mais
detidamente no que se refere à estrutura ocupacional, observa-se um crescimento
abrupto dos subempregados. O nível de ocupados em atividades de baixa produtividade
do trabalho passou de 12 100 000, em 1980, para 26 400 000, em 1991 (ver tabela 1).
TABELA 1
DISTRIBUIÇÃO E PARTICIPAÇÃO DO SUBEMPREGO, DO EMPREGO E DA OCUPAÇÃO,
BRASIL
Ano |
Subemprego |
Emprego |
Ocupação |
Urbano |
Agrícola |
Total |
Urbano |
Agrícola |
Total |
Urbano |
Agrícola |
Total |
Milhões de
pessoas |
1980
|
5.4
|
6.7
|
12.1
|
24
|
5.9
|
29.9
|
29.4
|
12.5
|
41.9
|
1991
|
17.6
|
8.8
|
26.4
|
25.2
|
3.8
|
28.9
|
42.7
|
12.6
|
55.3
|
2000
|
12
|
7.1
|
19.1
|
41.5
|
5
|
46.6
|
53.5
|
12.1
|
65.6
|
2010
|
16.8
|
7.5
|
24.3
|
57.3
|
4.8
|
62
|
74.1
|
12.3
|
86.4
|
Percentagem |
1980
|
44.6
|
55.4
|
100
|
80.3
|
19.7
|
100
|
70.2
|
29.8
|
100
|
1991
|
66.7
|
33.3
|
100
|
87.2
|
13.1
|
100
|
77.2
|
22.8
|
100
|
2000
|
62.8
|
37.2
|
100
|
89.1
|
10.7
|
100
|
81.6
|
18.4
|
100
|
2010
|
69.1
|
30.9
|
100
|
92.4
|
7.7
|
100
|
85.8
|
14.2
|
100
|
A pressão externa que pairava sobre a economia brasileira para se obter divisas
abalou de duas formas a geração de postos de trabalho no país. De um lado, a
expansão da produção agrícola de grande escala e altamente mecanizada passou a
reproduzir em escala ampliada o subemprego rural, identificado com as unidades de
subsistência. Entre 1980 e 1991, houve um acréscimo de pouco mais de 2 000 000 de
subempregados rurais, o que não necessariamente quer dizer que as precárias
condições de vida e trabalho no Brasil rural tenham gerado “apenas” 2 000 000 de
ocupações de baixa produtividade. Uma parcela não desprezível de trabalhadores
rurais migrou para atividades não-agrícolas, estivessem estas localizadas em centros
urbanos ou em zonas rurais que passaram por um processo de urbanização.29 Com poucas perspectivas de serem
absorvidos pelo agronegócio e impulsionados pela miséria que avançava no campo,
muitos migraram, sobretudo, aos centros urbanos, onde tende a ser maior a demanda de
trabalho. Todavia, há que se ponderar que as condições nos centros urbanos do país
não eram promissoras, o que nos leva à segunda ordem de problemas que modificaram a
estrutura ocupacional do país. Em um momento de modificação profunda na divisão
internacional do trabalho, os setores industriais que tinham alguma vazão para os
mercados externos tanto perderam competitividade internacional30 quanto passaram a sofrer maior concorrência da
indústria americana na segunda metade da década de 1980,31 o que exigiu uma queda nos custos variáveis sem
que a quantidade produzida fosse gravemente afetada. Ou seja, o ajuste competitivo
local das filiais das empresas transnacionais redundou em demissões e no aumento da
taxa de exploração sobre o trabalhador que manteve o seu emprego. Como resultado,
muitos foram obrigados a encontrar uma estratégia de sobrevivência fora das fábricas
e dos estabelecimentos que prestavam serviços às mesmas. Apesar de um acréscimo de 1
200 000 de empregos em atividades não-agrícolas na década de 1980, o crescimento das
atividades de baixa produtividade nos centros urbanos foi muito superior, passando
de 5 400 000 para 17 600 000. Assim, a população rural que fugia da deterioração das
condições de vida e trabalho no campo, e que se somava à população pobre que já
residia nas cidades, foi engolida por uma crise de grandes proporções.
Mas a expansão contínua do latifúndio agromercantil se estendeu para além dos anos
1980, concorrendo fortemente para tornar a oferta de trabalho agrícola ainda mais
excedente nas décadas posteriores. A quantidade de empregos agrícolas verificada em
1980 não foi retomada nem mesmo em 2010, quando a produção e a produtividade das
lavouras para exportação eram já muito maiores que no início do período analisado
(ver tabela 1). Os processos de
desindustrialização e de especialização regressiva, que progrediram nos anos 1990 e
2000, atestam que a Crise da Dívida foi apenas uma das primeiras expressões de um
movimento muito mais profundo que vem alterando o perfil da estrutura das ocupações
rurais. Entre 1980 e 2010, por exemplo, a participação do subemprego agrícola passou
de 52.8 para 61%.32 Segundo Delgado (2012, p. 116), o aumento da produção e
da exportação das principais cadeias agroindustriais,33 baseadas sobretudo na exploração de recursos naturais,
não propaga o progresso técnico que abre fronteiras à acumulação de capital, não
abre novos mercados interindustriais nem leva ao aumento da demanda por bens finais.
Segundo este autor, nem mesmo um crescimento da agroindústria na casa dos 10% ao ano
entre 2000 e 2005 conseguiu oferecer garantias ao aumento da ocupação, dos salários
e da massa de salários.
Mas a quantificação da população trabalhadora apta e disposta a ocupar um posto de
trabalho em atividades agrícolas depende ainda de um outro componente que é de
difícil captação. Em 2010, embora nossa pesquisa indique que os trabalhadores
ocupados em atividades rurais de baixa produtividade tenham passado a 7 500 000, o
que significa um decréscimo de 1 300 000 com relação a 1991, acreditamos que este
seja um número subestimado quando se trata de analisar a população disponível para
participar dessas atividades. Parte da população urbana, que muitas vezes é de
origem rural e ainda mantém vínculos com o trabalho do campo, busca ocupações
irregulares nas atividades agrícolas e não-agrícolas ao sabor da ocasião, compondo
com a população trabalhadora já ocupada em atividades agrícolas uma superpopulação
latente de grandes dimensões.34
Devido às dificuldades de se encontrar um emprego não-agrícola, para muitos a
solução acaba sendo migrar constantemente entre o subemprego rural e o subemprego
urbano, sendo que desde os anos 1980 as cidades de pequeno e médio porte passaram a
receber um fluxo muito maior de migrantes do que nas décadas anteriores.35 A grande diferença é que a atual
estrutura industrial brasileira não possui mais uma grande capacidade de absorção da
mão de obra nem a mesma interlocução com os serviços urbanos de alta produtividade
que havia em meados do século xx –e aqui nota-se uma dimensão notável da
estrutura ocupacional que emergiu nos anos 1980: o crescimento do subemprego urbano.
Embora as atividades não-agrícolas de alta produtividade tenham percebido um
acréscimo considerável no período, é preocupante a constatação de que a participação
do subemprego urbano cresceu ainda mais, para o que os serviços de baixa
produtividade contribuíram significativamente.
Em 2010, eram 16 800 000 os trabalhadores ocupados em atividades urbanas de baixa
produtividade, o que totalizou 69.2% de todo o subemprego no país.36 Isso significa, de um lado, que o
subemprego urbano se consolidou como a principal alternativa à inexistência de
ocupações de elevada produtividade em quantidade suficiente à absorção de toda a
oferta de trabalho –o que, de certo modo, acompanhou a transformação demográfica do
país, que passou a contar com uma maioria urbana apenas no decorrer da década de
1960. De outro, observa-se que o nível de subempregados resiste em regressar a
níveis inferiores àqueles encontrados em 1980. As taxas de crescimento do emprego e
do subemprego da tabela 2 atestam que a
abertura de postos de trabalho de alta produtividade é insuficiente para atender o
crescimento da oferta de trabalho.
TABELA 2
VARIAÇÕES ANUAIS DO SUBEMPREGO, DO EMPREGO E DA OCUPAÇÃO,
PERCENTAGEM, BRASIL
Anos |
Subemprego |
Emprego |
Ocupação |
Urbano |
Agrícola |
Total |
Urbano |
Agrícola |
Total |
Urbano |
Agrícola |
Total |
1991-1980
|
224.9
|
32
|
118.4
|
4.9
|
-36.2
|
-3.2
|
45.4
|
0.1
|
31.8
|
2000-1980
|
121.7
|
6.3
|
58
|
73.1
|
-14.4
|
55.9
|
82.1
|
-3.4
|
56.5
|
2000-1991
|
-31.8
|
-19.5
|
-27.7
|
65
|
34.2
|
61
|
25.2
|
-3.5
|
18.7
|
2010-2000
|
40.4
|
5.7
|
27.5
|
37.9
|
-5.3
|
33.2
|
38.5
|
1.1
|
31.6
|
2010-1991
|
-4.2
|
-14.9
|
-7.8
|
127.5
|
27.1
|
114.5
|
73.4
|
-2.4
|
56.2
|
2010-1980
|
211.2
|
12.3
|
101.4
|
138.8
|
-18.9
|
107.7
|
152.1
|
-2.3
|
105.9
|
Ao longo do período analisado, a economia deu sinais claros de que não possuía meios
para dar continuidade ao desenvolvimento das forças produtivas tal como ocorrera
entre 1930 e 1980. Nesse sentido, observamos que, entre 1980 e 2010, o crescimento
do subemprego urbano, de 211.2%, foi superior ao crescimento do emprego das
atividades não-agrícolas, de 138.8%. De modo análogo, a evolução das ocupações
rurais também indica um acirramento das contradições entre capital e trabalho no
mesmo período. Enquanto o emprego apresentou queda de 18.9%, o subemprego apresentou
uma variação positiva de 12.3% ao longo destes 30 anos.
Sem condições de acompanhar o ritmo da demanda de trabalho, o lento e vacilante
crescimento econômico proporcionou não apenas este contínuo acréscimo de subemprego
como também permitiu um aumento da taxa de desemprego, cuja dinâmica não deve ser
compreendida de modo isolado. Há uma complementaridade entre o subemprego e o
desemprego, visto que ambas estas variáveis refletem a insuficiência da estrutura
produtiva em absorver a força de trabalho disponível. Se, de um lado, refugiar-se em
uma atividade de baixa produtividade representou uma estratégia de sobrevivência
bastante procurada nos anos 1980, o aumento do desemprego nos anos 1990 refletiu o
esgotamento do subemprego como alternativa (ver gráfico 1).
GRÁFICO 1
TAXA DE DESEMPREGO E PARTICIPAÇÃO DO SUBEMPREGO NA POPULAÇÃO OCUPADA,
PERCENTAGEM, BRASIL
Fonte: para os dados do desemprego de 1980, 1991 e 2000, Portugal Jr. (2012); para o demais,
elaboração própria com base en ibge, Censos demográficos, anos
referidos.
Após a reversão do ciclo expansivo que se seguiu à irrupção da Crise da Dívida, o
subemprego disparou, alcançando a impressionante marca de 47.7% da população
ocupada, em 1991, o que representou um acréscimo de quase 19 pontos percentuais com
relação a 1980. No mesmo período, o desemprego cresceu com menor intensidade,
passando de dois para 5.4%. Foi apenas na década seguinte, quando o processo de
liberalização da economia acelerou, que o desemprego assumiu grandes proporções,
chegando a 15.3% da população economicamente ativa (pea), o que revelaria a
crescente dificuldade em se fazer do subempregado uma estratégia de sobrevivência
diante de um pib tão baixo e oscilante. Mas a queda na participação de
subempregados entre 1991 e 2000 não parece estar ligada apenas ao esgotamento do
subemprego como estratégia de sobrevivência –afinal, a queda no subemprego é mais
que proporcional ao aumento do desemprego. Durante a década de 1990, parte
importante da pea foi absorvido em atividades de produtividade mais
elevada, o que deve ser visto com ressalvas. A maioria das ocupações criadas neste
período são ocupações terciárias, que tradicionalmente oferecem salários mais baixos
e proteção sindical menor que os trabalhos na indústria de transformação, que
apresentou queda na participação da estrutura ocupacional.
Nos anos 2000, quando o crescimento médio do produto foi alto em comparação com a
década anterior, o desemprego apresentou uma queda considerável, baixando cerca de
oito pontos percentuais, chegando a 7.6% da pea. Todavia, a expansão
econômica não foi suficientemente elevada para que a taxa de desemprego se
aproximasse do patamar verificado em 1980. Paralelamente, observamos que, devido à
deterioração da estrutura econômica, que não conseguiu estabelecer uma dinâmica
mercantil mais forte, o crescimento econômico não foi suficiente para reduzir
substancialmente a taxa de subemprego, que no ano de 2010 chegou a 28.2%, índice
bastante próximo ao que se verificou em 2000. Isso significa que desde, uma
perspectiva mais geral, a criação de empregos e subempregos do período se deu em um
ritmo muito semelhante (ver tabela 2).
Embora na última década o desemprego tenha sofrido uma retração importante e o
subemprego retornado a taxas semelhantes às da década de 1980, o perfil da atual
estrutura ocupacional é muito mais frágil. A desestruturação que atravessa a
economia, aliada ao crescimento do desemprego estrutural próprio da modernização dos
meios de produção, levou a uma queda no número de empregos nos ramos mais intensivos
em capital e tecnologia da indústria de transformação, que passou de 2 500 000 em
1980 para 1 300 000 em 2010 (ver tabela 3).
Esta queda do número absoluto de empregados das indústrias dinâmicas representou uma
diminuição ainda maior na participação destes empregados na população ocupada nas
indústrias manufatureiras, que passou de 36.1% em 1980 para 12.5% em 2010.
TABELA 3
ESTRUTURA E PARTICIPAÇÃO DO SUBEMPREGO, DO EMPREGO E DA OCUPAÇÃO DAS
INDÚSTRIAS MANUFATUREIRAS, BRASIL
Anos |
Subemprego |
Emprego |
Ocupação |
Tradicional |
Dinâmica |
Total |
Tradicional |
Dinâmica |
Total |
Tradicional |
Dinâmica |
Total |
Milhões de pessoas |
1980
|
0.3
|
0
|
0.4
|
4.1
|
2.5
|
6.6
|
4.5
|
2.5
|
7
|
1991
|
1.9
|
0.3
|
2.3
|
3.3
|
2.7
|
6
|
5.2
|
3
|
8.3
|
2000
|
1.1
|
0
|
1.2
|
6.4
|
1.2
|
7.6
|
7.5
|
1.2
|
8.8
|
2010
|
1.4
|
0
|
1.4
|
7.6
|
1.3
|
8.8
|
8.9
|
1.3
|
10.2
|
Percentagem |
1980
|
4.9
|
0.3
|
5.2
|
58.8
|
36.1
|
94.8
|
63.7
|
36.3
|
100
|
1991
|
23.3
|
4
|
27.3
|
40.1
|
32.6
|
72.7
|
62.1
|
36.6
|
100
|
2000
|
13
|
0.4
|
13.4
|
72.9
|
13.6
|
86.6
|
85.9
|
14.1
|
100
|
2010
|
13.2
|
0.2
|
13.4
|
74.1
|
12.5
|
86.6
|
87.4
|
12.6
|
100
|
A queda do emprego nos setores industriais mais dinâmicos aponta para uma perda de
representatividade muito grande também quando analisada junto à população ocupada
(ver tabela 4). Nessa relação, a sua
participação passou de 6%, em 1980, para 1.5%, em 2010. De modo análogo, houve um
decréscimo na participação do emprego na indústria tradicional, ainda que em ritmo
um pouco mais lento. Apesar do emprego ter quase que dobrado, indo de 4 100 000 a 7
600 000, sua participação no total de ocupados também declinou, passando de 9.8 a
8.8%, o que evidencia que o setor manufatureiro como um todo perdeu espaço na
geração de postos de trabalho na economia brasileira.
TABELA 4
PARTICIPAÇÃO DO SUBEMPREGO, DO EMPREGO E DA OCUPAÇÃO DAS INDÚSTRIAS
MANUFATUREIRAS NA POPULAÇÃO OCUPADA, PERCENTAGEM, BRASIL
Anos |
Subemprego |
Emprego |
Ocupação |
Tradicional |
Dinâmica |
Total |
Tradicional |
Dinâmica |
Total |
Tradicional |
Dinâmica |
Total |
1980
|
0.8
|
0
|
0.9
|
9.8
|
6
|
15.8
|
10.6
|
6.1
|
16.7
|
1991
|
3.5
|
0.6
|
4.1
|
6
|
4.9
|
10.9
|
9.3
|
5.5
|
15
|
2000
|
1.7
|
0.1
|
1.8
|
9.7
|
1.8
|
11.6
|
11.5
|
1.9
|
13.3
|
2010
|
1.6
|
0
|
1.6
|
8.8
|
1.5
|
10.2
|
10.3
|
1.5
|
11.8
|
A partir da obsoletização do parque industrial brasileiro, nos anos 1980, e da perda
de elos da cadeia produtiva, que avança decididamente a partir da década de 1990,
não houve apenas uma retomada de formas de ocupação que se caracterizam pela baixa
produtividade e pela baixa remuneração do trabalho. Muitos dos que perderam seus
empregos no setor secundário e no setor primário, além de muitos que ingressaram à
pea, encontraram uma ocupação no setor terciário, que já em 1991 era o
setor mais representativo da estrutura ocupacional, perfazendo mais da metade da
população ocupada (ver tabela 5). Neste ano,
o nível de ocupação no setor terciário era de 54.8%, o que representou um acréscimo
de 9.3 pontos percentuais com relação a 1980.
TABELA 5
DISTRIBUIÇÃO E PARTICIPAÇÃO DO SUBEMPREGO, EMPREGO E DA OCUPAÇÃO DE
ACORDO COM OS SETORES DE ATIVIDADE, BRASIL
Anos |
Subemprego |
Emprego |
Ocupação |
Primário |
Secundário |
Terciário |
Primário |
Secundário |
Terciário |
Primário |
Secundário |
Terciário |
Milhões de pessoas |
1980
|
6.7
|
0.9
|
4.5
|
5.9
|
9.4
|
14.5
|
12.5
|
10.3
|
19.1
|
1991
|
8.8
|
3.7
|
13.9
|
3.8
|
8.8
|
16.4
|
12.6
|
12.4
|
30.3
|
2000
|
7.1
|
0.2
|
9.9
|
5
|
11.8
|
29.8
|
12.1
|
13.9
|
39.6
|
2010
|
7.5
|
3.3
|
13.6
|
4.8
|
14.4
|
42.8
|
12.3
|
17.7
|
56.4
|
Percentagem |
1980
|
55.2
|
7.2
|
37.6
|
19.7
|
31.6
|
48.7
|
29.9
|
24.6
|
45.5
|
1991
|
33.4
|
13.9
|
52.8
|
13
|
30.3
|
56.7
|
22.7
|
22.5
|
54.8
|
2000
|
37.1
|
11.1
|
51.7
|
10.8
|
25.3
|
63.9
|
18.5
|
21.2
|
60.4
|
2010
|
30.8
|
13.4
|
55.8
|
7.7
|
23.2
|
69.1
|
14.2
|
20.5
|
65.3
|
Na década de 1980, a grande maioria destas pessoas se refugiou nas atividades
terciárias de baixa produtividade do trabalho, que passou a abrigar 13 900 000, o
que representou um acréscimo de 9 400 000 de subempregados em pouco mais de dez
anos. Em termos relativos, este aumento representou um salto igualmente expressivo
na participação das atividades terciárias no subemprego, passando de 37.6 para 52.8%
do total dos ocupados em atividades de baixa produtividade. Nas duas décadas
posteriores, marcadas pela liberalização aberta da economia, o seu patamar foi
elevado, chegando a 55.8% em 2010, o que evidencia que a transformação do setor
terciário no setor com maior participação na população ocupada e com maior
participação no total de subempregados não foi uma mudança conjuntural trazida pela
Crise da Dívida. O setor terciário da economia brasileira continuou a se destacar
pelos serviços pessoais e outras formas de ocupação de baixa produtividade, o que
nos permite identificá-lo como o maior depositário de mão de obra ocupada em
atividades de baixa produtividade, substituindo um posto que anteriormente era
ocupado pelo setor primário (ver gráfico 2).
De outro modo, o que se nota é uma reconfiguração da heterogeneidade estrutural no
país.
GRÁFICO 2
VARIAÇÕES ANUAIS DA PARTICIPAÇÃO DOS SUBEMPREGADOS NA POPULAÇÃO
OCUPADA, PERCENTAGEM, BRASIL
Fonte: elaboração própria com base en ibge, Censos
demográficos, anos referidos.
A despeito do subemprego no setor primário ter preservado, em 1991, a mesma
participação apresentada em 1980 –15.9%–, o subemprego no terciário cresceu quase
quinze pontos percentuais, passando a 25.2%. Nos anos seguintes, quando a
participação do subemprego caiu e o setor terciário se consolidou como o principal
absorsor de atividades de baixa produtividade, os serviços pessoais, similares e
outros alcançaram 10.6% da população ocupada em 2010, superando de forma isolada a
participação das ocupações primárias de baixa produtividade.
Em suma, o quadro que montamos procurou evidenciar, acima de tudo, que as
articulações entre as atividades agrícolas e não-agrícolas, embora tenham perdido a
evidência que já possuíra, continuam a jogar papel relevante na determinação do
perfil das ocupações urbanas. Tentamos apresentar evidências de que a constante
expulsão de mão de obra agrícola ainda é um componente significativo na alimentação
das ocupações não-agrícolas de baixa produtividade, sobretudo terciárias, que hoje
se encontram também disseminadas entre os centros urbanos de menor densidade
populacional e industrial –e este nos parece um ponto fundamental. Embora o êxodo
rural provocado pela contínua expansão da fronteira do agronegócio não seja mais tão
grande como foi em meados do século xx, a atual dinâmica da indústria
urbana nacional não favorece a criação de empregos
não-agrícolas.
De um lado, a divisão internacional do trabalho que emerge na década de 1980 impôs
uma regressão à indústria urbana exatamente em um momento em que a população já era
majoritariamente urbana. Ou seja, a degradação da indústria de transformação
iniciada ainda nos anos 1980 levou a um aumento do desemprego e do subemprego,
sobretudo do subemprego urbano. De outro lado, a expansão das atividades agrícolas
não levou a um aumento da demanda por trabalho agrícola, o que significa que o
subemprego rural não apenas continuou a ser reproduzido como também continuou a
produzir uma grande quantidade de trabalhadores rurais dispostos a se deslocar para
atividades não-agrícolas. Assim, a heterogeneidade estrutural que singulariza a
sociedade brasileira assumiu uma nova composição que apresenta duas características
básicas. Primeiramente, ocupações de elevada produtividade do setor secundário
foram, em boa medida, substituídas pelo desemprego, por empregos de menor qualidade
e por subempregos, havendo em ambos os casos um predomínio de ocupações terciárias.
Em segundo lugar, o desemprego aberto em larga escala se consolidou. Todavia, sua
manifestação não possui sempre a mesma intensidade. Nos anos 1980 e no começo em
2010, por exemplo, ele se manifesta de modo sorrateiro, pois, a despeito da taxa de
desemprego ter apresentado patamares relativamente baixos, a estrutura econômica
nacional se deteriorou em ambos os momentos. Em outros momento, como a década de
1990, quando a população trabalhadora não conseguia sequer uma ocupação de baixa
produtividade, o desemprego emerge com mais intensidade e escancara a fragilidade de
nossa economia. Se nas conjunturas internacionais favoráveis ao crescimento
periférico o desemprego foi mitigado mesmo na ausência de um processo de
revitalização da estrutura produtiva, é nas conjunturas internacionais desfavoráveis
que o desemprego aberto emerge de forma abrupta e evidencia a possibilidade de
reversão à qual fazemos advertência desde 2014 (Zullo, 2014).
Considerações finais
Combalida, a economia brasileira impõe dificuldades ao enfrentamento do processo de
regressão das forças produtivas, que, estendida para a totalidade da realidade
concreta, assume a forma de uma reversão neocolonial.37 Como consequência, a classe trabalhadora está exposta
a uma situação extremamente precária, revelando os limites de um país que não
transformou as suas estruturas econômica, sociocultural e política. Embora a
participação das ocupações de baixa produtividade seja muito semelhante nos anos de
1980 e de 2010, o nível de subempregos e de desempregados praticamente dobrou neste
mesmo período. Mesmo na última década, comumente celebrada como um período de grande
progresso econômico e de organização do mercado de trabalho, nossa análise não
revelou indícios significativos de que o processo regressivo, que há décadas
atravessa as estruturas e a dinâmica do país, tenha sido obstado. Pelo contrário, a
economia continua carente do anel de feed-back salientado por Furtado (1972). Mas não apenas isso: as
condições de trabalho e remuneração das atividades agrícolas e não-agrícolas
continuam a operar como vasos comunicantes, deteriorando-se mutuamente –a redução do
grau e da intensidade com que este processo se desenrola hoje em dia não justifica a
desvinculação dos setores agrícola e não-agrícola, que devem ser estudados em sua
totalidade e dentro de horizontes temporais mais longos, e não de modo fracionado e
conjuntural.
O desafio que hoje se coloca à superação do subdesenvolvimento e da heterogeneidade
estrutural é, pois, muitas vezes superior ao que se apresentou no passado. Ainda que
por vezes alguma conjuntura histórica favorável ao crescimento da economia
brasileira tenha feito parecer que nos afastávamos definitivamente de um passado
identificado com o que era especificamente colonial, parece-nos claro que a reversão
neocolonial reafirma a composição do passado arcaico com o presente moderno. A
recente exacerbação do conflito entre capital e trabalho expressa de modo bastante
claro os extremos a que a calibragem exercida pela burguesia brasileira sobre o
excedente econômico pode chegar em tempos de neoliberalismo.
Assim, parece-nos que, a questão agrária e, pois, a reforma agrária, possuem um
enorme potencial construtivo para a organização da economia brasileira. Embora
atualmente não exista um êxodo rural como ocorreu em meados do século xx, a
economia dos últimos quase quatro décadas não cresceu de forma sustentada nem
vigorosa. É tanto necessário construir uma estrutura fundiária como também uma
industrialização favoráveis à superação do subemprego estrutural que marca os países
latino-americanos.