Ivanil Nunes
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil, email: ivanilnunes@usp.br
A partir da década de 1940, no Brasil, iniciou-se um novo ciclo de modelo de negócios ferroviários, fundamentado na estatização do sistema. O objetivo neste artigo é analisar o processo de expansão das linhas, o aumento da oferta dos serviços oferecidos e a expansão da categoria ferroviária, e a relação destes fatores com a estatização das ferrovias. Seria correto afirmar que estas ferrovias foram se tornando ineficientes ao longo das duas primeiras décadas do século xx, particularmente a partir da primeira guerra mundial? Conclui-se neste trabalho, que as dificuldades enfrentadas pelas ferrovias brasileiras, que as conduziram à estatização, não é fenômeno que passou a ocorrer a partir da década de 1940, exclusivamente. Pois, na verdade, grande parte das mazelas que atingiram as ferrovias brasileiras e as conduziram à estatização já se manifestavam desde os primeiros anos do século xx.
Palavras chave: ferrovias; ferrovias brasileiras; modelo de negócios; ferroviários; estatização.
From the 1940s in the Brazil, started a new cycle of rail business model, based on the nationalization of the system. The objective of this paper is to analyze the process of expansion of lines that increased the supply of services offered and the expansion of railway category, and the relationship of these factors with the nationalization of the railways. Would it be correct to say that these railways were becoming ineffective over the first two decades of the twentieth century, particularly after World War I? We conclude in this paper that these difficulties faced by Brazilian railways, which led them to the nationalization, is not a phenomenon that started to occur from the 1940s, exclusively. Really, much of the ills that hit the Brazilian railroads and led them to the nationalization already had been manifested from the early years of the twentieth century.
Key words: railways; Brazilian railways; rail business model; nationalization.
Artigo recebido: 17 de novembro de 2015.
Artigo aceito: 1 de março de 2016.
A partir do final da década de 1940, começou a ser criado um novo modelo de negócios ferroviários no Brasil, fundamentado na estatização do sistema. E esta malha férrea seguiu estatizada até a década de 1990, quando, por meio de novas concessões, os serviços ferroviários voltaram ao controle privado. O objetivo neste artigo é analisar o processo de expansão das linhas, o aumento da oferta dos serviços oferecidos e a expansão da categoria ferroviária e a relação destes fatores com a estatização das linhas férreas brasileiras. Entende-se neste trabalho, que as dificuldades enfrentadas pelas ferrovias brasileiras, que as conduziram à estatização, não é fenômeno que passou a ocorrer a partir da década de 1940 exclusivamente. Em diversas outras ocasiões anteriores, o Estado já havia intervindo em uma ou outra empresa. Na verdade, grande parte destas mazelas que atingiu as ferrovias e as conduziram à estatização já se manifestavam desde os primeiros anos do século xx.
Indaga-se, portanto: por que estas ferrovias foram estatizadas no Brasil? E, por que aumentara tanto a quantidade de trabalhadores empregados no setor? Seria correto afirmar que estas ferrovias foram se tornando ineficientes ao longo das duas primeiras décadas do século xx, particularmente a partir da primeira guerra mundial? Seriam estes os principais motivos pelos quais teriam sido estatizadas (em âmbito federal e estadual)?
Considera-se neste artigo que a maior parte das empresas férreas brasileiras foi estatizada devido a combinações de, pelo menos, seis grupos de fatores que contribuíram para a consolidação de um desempenho bastante negativo, que se tornou estrutural ao longo da primeira metade do século xx.
O primeiro deles está relacionado à expansão dos serviços oferecidos e o aumento da quantidade de mão de obra utilizada, pelos seguintes motivos: a) o próprio modelo de negócios ferroviários daquele período, instituído pela lei de concessão, que impunha às ferrovias aceitar todo tipo de transportes; ainda que alguns destes, tais como de passageiros, e de animais, resultassem em fretes proporcionalmente menores aos pagos pelos transportes de mercadorias. As ferrovias tinham que transportar quase todo tipo de mercadorias trazidas pelos clientes às estações ferroviárias. Por tratar-se de um serviço público, aquelas deveriam realizar determinadas atividades que atendessem a certas demandas sociais; motivo pelo qual, segundo Cena (2012), as ferrovias deveriam ser obrigadas a “transportar todo a todas partes e en todo tiempo, con a regularidad obligada de sus servicios” (p. 12). b) Parte desta demanda crescente por transportes implicava em utilização desproporcional de mão de obra, o que provocava rendimento marginal decrescente.
O segundo fator está relacionado à falta de investimentos em bens de capital (locomotivas, vagões, trilhos, etc.), capazes de atender à demanda crescente, a um custo menor ou equivalente; o terceiro está vinculado à impossibilidade de manutenção dos níveis dos preços dos fretes antes obtidos por cada unidade de tráfego realizada. O quarto fator relevante a contribuir para o desempenho negativo foi a valorização da taxa de câmbio,1 no período 1900-1920.
Um quinto e um sexto grupo de fatores, que dada à delimitação do tema, 1905-1920, não serão tratadas neste artigo, estão relacionados às mudanças institucionais (ocorridas no mercado de trabalho brasileiro), e à concorrência rodoviária, respectivamente. A primeira metade do século xx é marcada pelo aumento, em termos absolutos e relativos, da quantidade de ferroviários empregados concomitantemente ao aumento dos custos da força de trabalho devido às conquistas dos direitos trabalhistas; tais como a Lei de Férias, de 1925. Direitos estes conquistados por meio da formação e/ou reorganização dos sindicatos, durante a década de 1930, e pela expansão e formalização destes direitos trabalhistas em 1943, após a entrada em vigor da Consolidação das Leis do Trabalho. O quarto grupo de causas, dentre as mais propaladas pela bibliografia, refere-se ao avanço do setor rodoviário no Brasil; fator que se mostrou fatal para as ferrovias após a década de 1930.
Portanto, aquele modelo de negócios ferroviários, constituído no século xix, parece ter tido fortes dificuldades para se adaptar ao novo contexto das primeiras décadas do século xx, marcado por mudanças macroeconômicas, e pelas instabilidades provocadas pela primeira guerra mundial. Sejam estas devido ao aumento das dificuldades para se importar bens de capital, sejam as devido às mudanças estruturais da circulação de mercadorias produzidas e distribuídas, a partir do mercado interno em expansão, dentro da lógica de substituição de importações.
Este artigo está dividido em cinco seções, a começar por esta introdução. Na segunda analisa-se o fenômeno da estatização de empresas ferroviárias, que não se limita aos diversos casos ocorridos no Brasil. Na terceira, analisam-se o aumento da demanda por transportes ferroviários e os impactos deste crescimento dos transportes ao modelo de negócios ferroviários daquele período; argumenta-se aí que esta combinação implicou em ampliação do uso desproporcional de mão de obra. Na quarta, trata-se do surgimento estrutural dos déficits operacionais. Fenômeno que se manifesta diante do aumento dos transportes (de passageiros, animais, e bagagens e encomendas) combinados com a dificuldade de investimentos em fatores de capitais (locomotivas, vagões, carros de passageiros) –geradores de produtividade. Por último são apresentadas as considerações finais.
Quanto às fontes utilizadas para este trabalho destacam-se os relatórios do Ministério da Viação e Obras Públicas (em diante mvop). Uma verdadeira riqueza de fontes, esses dados estatísticos das estradas de ferro brasileiras foram publicados nos relatórios do Ministério da Agricultura Comércio e Obras Públicas, até 1897. A partir da lei número 560, de 31 de dezembro de 1898, tornou-se obrigatória a organização de estatísticas completas do tráfego, sob moldes uniformes, em todas as vias férreas de propriedade ou concessão federal, publicadas pela Imprensa Nacional, sob o título Estatística das estradas de ferro da União e concedidas pela União. Título que no ano seguinte passou a denominar-se Estatística das estradas de ferro da União e das fiscalizadas pela União. Desde 1921, a compilação desses dados passou a cargo da Inspectoria Federal das Estradas, que passou proceder à publicação anual da estatística de todas as estradas de ferro nacionais. Por esse motivo, a publicação referente ao ano de 1920 surge com o título de Estatística das estradas de ferro do Brasil (Brasil, mvop, 1940, p. 9). Vale observar que essas fontes são ainda pouco utilizadas por pesquisadores deste tema, ainda que estas fontes tenham sido disponibilizadas (recentemente), virtualmente, pela Biblioteca do Ministério da Fazenda, no Rio de Janeiro.
A estatização precoce de linhas férreas não ocorreu somente no Brasil. Em diversas outras partes do mundo, esse fenômeno vinha ocorrendo desde o século anterior. Segundo Bogart (2010, p. 159), “the rise of state ownership was one of the most significant policy changes in the railway sector in the early 20th century”. Ainda de acordo com a mesma fonte, por volta de 1870 a operação ferroviária privada era predominante na maior parte dos países, algo em torno de 90% das linhas. Em 1912, no entanto, as ferrovias estatizadas já correspondiam a cerca de 30% de toda a malha férrea mundial e cerca de um quinto desta malha havia sido construída pelos Estados, que as operavam diretamente ou as arrendavam a terceiros.
Afinal, quais teriam sido os fatores decisivos para a estatização de empresas que em sua maioria foram anteriormente privadas? Algumas hipóteses devem ser observadas por suas relevâncias:
Many scholars have emphasized the role of military and fiscal factors, particularly in the European context. The argument is that nationalizations were desirable because they improved military effectiveness in times of war, and it was easier to extract income directly from state-owned railroads rather than through regular taxation. Others have argued that nationalizations were also driven by the poor financial performance of private railroads, especially in Latin America. Poor financial performance has been linked with a variety of factors such as ruinous competition, low demand, and high operating costs. Politics has figured prominently in the history of most railroad nationalizations, but the focus has been on individual leaders, like Otto von Bismarck in Prussia. The burgeoning literature on political institutions suggests that weak constraints on the power of the state could also contribute to nationalizations by making it easier to expropriate private property (Bogart, 2009, p. 203).
Para o caso brasileiro, no entanto, deve ser descartado o argumento da literatura apresentado acima, segundo a qual “weak constraints on the power of the state could also contribute to nationalizations by making it easier to expropriate private property” (Bogart, 2009, p. 203). No Brasil, tanto governos supostamente fracos, como foram os gabinetes do fim do período imperial brasileiro, derrubado em 1889, quanto os republicanos fortes que os sucederam (comandados pelos marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto entre os anos de 1889 a 1894) mantiveram inalterada a política de estatização.
Vale atentar-se ao fato de que a estatização das ferrovias brasileiras já era relativamente maior que em outras partes do mundo, desde o início do século. No Brasil, em 1908, por exemplo, o governo federal já era proprietário de 7 931 quilômetros de vias ou 45% das linhas em operação no país. Estas empresas, após a estatização, eram oferecidas a outros concessionários, estados ou particulares, por meio de arrendamento. Nesta ocasião, somente 2 906 quilômetros, ou 16.5% das linhas, eram diretamente administradas pelo governo federal. Embora a União2 fosse proprietária daquelas empresas estatizadas estas eram por ela administradas apenas por um curto período de tempo; o suficiente para serem passadas adiante. Sua prática era a de administrar pequena parcela das linhas nas quais empregava apenas 8 000 trabalhadores, ou 24% da força de trabalho do setor (mvop, 1910, pp. xi, 52). Acrescente-se, ainda, que havia neste período analisado algumas estatizações que haviam sido realizadas pelos estados da federação. São Paulo, por exemplo, havia adquirido a E. F. Sorocabana, em 1905 e a E. F. Araraquara, em 1919.3
A hipótese apresentada neste texto corrobora apenas em partes com os diagnósticos apontados por Bogart (2009). Particularmente com seu argumento de que, na América Latina, o desempenho financeiro ruim, é que teria sido o causador da estatização das empresas férreas. No entanto, não parece apropriado afirmar que tal desempenho ruim estivesse associado a fatores como concorrência ruinosa, a baixa demanda e altos custos operacionais. No caso brasileiro tanto a “concorrência ruinosa” quanto a “baixa demanda” não se aplicam, para o período aqui analisado. As ferrovias brasileiras foram concedidas com privilégios de zona, que garantia certa reserva de mercado para cada concessão (Pinto, 1977, p. 28). Se concorrências pontuais entre empresas ferroviárias podem ser detectadas ao longo do tempo estas concorrências exacerbadas fazem parte de exceção, não da confirmação da existência de “concorrência ruinosa”, como regra. Também não se pode concordar que tenha sido a baixa demanda por transportes ferroviários a responsável pela estatização das ferrovias brasileiras, uma vez que estas empresas seguiram atendendo a uma demanda crescente por transportes de cargas, passageiros, bagagens e encomendas e animais ao longo dos anos.
Concordamos com Bogart quando este relaciona os altos custos operacionais às estatizações. Pois, no Brasil, o recurso da estatização foi utilizado, sobretudo, quando as empresas tornavam-se estruturalmente incapazes de atingir seu break-even point;4 motivo mais que suficiente, para deixar de atrair investidores ao setor, restando àquelas empresas o amparo estatal. E neste país os custos operacionais tornaram-se relativamente maiores que as receitas durante a primeira a primeira guerra mundial. E isso, vale destacar, em um momento de baixa concorrência, pois as ferrovias não enfrentavam ainda a pesada concorrência rodoviária, que será crescente após a década de 1920; assim como aquelas empresas não tinham que pagar certos custos dos encargos trabalhistas, também crescentes entre 1925 e 1943.
Ao iniciar-se o século xx, as principais ferrovias brasileiras, dentre estas as já estatizadas,5 apresentavam baixo custo operacional –e isso pode ser comprovado quando comparados os saldos operacionais delas (receitas totais menos as despesas totais). Em 1902, por exemplo, na média, elas apresentavam superávit de 30%. Algumas delas (dentre as 20 analisadas: Paraná, Rede Bahiana, Santos Jundiaí e Paulista) apresentavam superávits superiores a 50%; entre 1905 e 1909 este saldo positivo se reduz para algo em torno de 20% (mvop, anos diversos). Mas, é a partir da primeira guerra mundial que este mercado começou a tender perigosamente em direção ao déficit estrutural. Embora a demanda continuasse crescente o desempenho financeiro6 foi se tornando ruim devido ao aumento dos custos operacionais.
O período compreendido entre 1905 e 1920 é fundamental para se compreender como estas adversidades foram se ampliando. Pois possui relação direta com o processo de estatização do setor. É importante ter-se em mente que o conjunto das ferrovias brasileiras não se tornou ineficiente na década de 1940, embora esta também tenha sido marcada por guerra e estatizações. Na verdade, o conjunto das ferrovias vinha apresentando ineficiências estruturais que tinham se tornado visíveis a partir da primeira guerra mundial. Fato é que estas deficiências foram agravadas pelas consequências socioeconômicas e tecnológicas que ocorreram durante a segunda guerra mundial (1939-1945). Desta vez, as dificuldades das ferrovias não resultavam apenas da falta de investimentos ou ao rendimento marginal decrescente que ocorria com o aumento dos transportes (de passageiros e animais), combinadas com falta de investimentos em bens de capital. A estas mazelas, já detectáveis desde a primeira guerra mundial, se acrescentava também a crescente concorrência do modal rodoviário.
Em 1940, apenas 30% do total de 34 252 quilômetros de vias em operação no país era ainda operado por particulares; 39% da malha era administrada diretamente pelo governo federal e os outros 31% das linhas eram administradas pelos governos estaduais. Quadro este que se manteve relativamente inalterado até 1948, quando 27% das ferrovias ainda eram administradas por particulares. Em 1949, no entanto, o avanço estatal se mostrou irreversível: de 35 972 quilômetros de linhas férreas brasileiras totais, 13.4% seguiam administradas por particulares e 31% delas pelos estados. Mais de 20 000 quilômetros de linhas eram administradas diretamente pelo governo federal, que era proprietário de 77% do total (mvop, 1955, pp. 15-17).
Paralelamente ao aceleramento do processo de estatização, observa-se neste período um considerável aumento na quantidade de trabalhadores empregados pelo conjunto das ferrovias brasileiras. A mão de obra cresceu de pouco mais de 30 000 trabalhadores, em 1906, para cerca de 150 000 ferroviários ao término da década de 1940 (aumento de 500%). Destes, 39.7% eram funcionários públicos que trabalhavam em empresas de propriedade da União; outros 11.5% trabalhavam para os estados. Assim, mais da metade desta categoria era formada por funcionários públicos (mvop, 1943, p. 31). E esta tendência de expansão da categoria ferroviária seguiu crescente no início da década seguinte. Em 1953, havia mais de 215 000 trabalhadores no setor, dos quais 136 000 estavam alocados em ferrovias pertencentes à União; outro tanto, 21 395 (10.6% do total) trabalhavam em ferrovias pertencentes aos estados. Logo, cerca de dois terços desta força de trabalho estava empregada em empresas estatizadas: pela União ou por estados (mvop, 1957, p. 25).
Vale destacar que a obtenção de maior saldo operacional ocorrerá sempre que as ferrovias transportarem proporcionalmente mais cargas (passageiros, bagagens e encomendas e animais), a um custo por unidade de tráfego (ut) relativamente menor. De preferência as cargas pesadas, com o mínimo de manipulação, e que percorram longas distâncias. O aumento da quantidade de transportes de outros produtos que não carga pesada tenderá a aumentar desproporcionalmente a quantidade de trabalhadores. Pois, o uso intensivo do fator trabalho será proporcionalmente maior quando aplicado na modalidade de transportes de passageiros, animais, e bagagens e encomendas, comparativamente ao transporte de carga pesada. E será crescente o aumento dessa mão de obra se, diante do aumento desta produção de unidades de tráfego, não houver correspondente aumento de investimentos em fator de capital e/ou manutenção dos níveis dos preços dos fretes obtidos anteriormente; ação que se tornou cada vez mais difícil a partir da primeira guerra mundial e assim se seguiu, posteriormente, devido à crise econômica de 1929 e as adversidades trazidas pela segunda guerra mundial.
Um segundo fator a contribuir para o aumento dos custos das empresas está relacionado à taxa de câmbio valorizada, entre 1905-1920. Segundo Duncan (1932):
The most difficult single feature of railway operation in Brazil is the unstable currency medium, the secular trend of which has been depreciation. It is hard to operate utilities, even in the most highly develop country, if the money medium in fluctuating. It is particularly so in Brazil, because locomotives, rails, other steel equipment, and coal have to purchase abroad and paid for in terms of gold prices. Home prices, for the most part, do not quickly follow changes in the exchange value of the mil reis. […] depreciating currency, has handicapped the railways, increased their costs, and decreased their efficiency (pp. 179-180).
A taxa de câmbio, que entre 1895 e 1899 passara por um período de desvalorização, voltou a se valorizar a partir de 1900; aumentando de 9.5 réis, neste ano, para 15.7 réis por pence, em 1905. E desta data seguiu em alta até 1920, a um valor médio equivalente a 14.6 réis por pence. Portanto, as ferrovias brasileiras experimentaram um longo período, de vinte de anos de desvalorização da moeda nacional, que voltou a se valorizar novamente somente a partir de 1921; e assim seguiu, pelo menos até 1925, ano em que cada pence passou a custar 6.1 réis (Instituto, 2015).
Com argumentação similar à de Duncan, Saes (1981) afirma que “a desvalorização da moeda brasileira acarreta de imediato, o aumento dos preços dos produtos importados: como o combustível básico é lenha e carvão e este último é obtido externamente a queda do valor da moeda levava ao aumento do gasto com combustível” (p. 130). Ainda de acordo com este autor, como grande parte dos bens de consumo vinha do exterior, a desvalorização da moeda implicava também no aumento do custo de vida dos trabalhadores, de onde se supõe, que tal defasagem salarial os impelia a buscar reajustes salariais. Reconhece este mesmo autor, no entanto, a dificuldade de se encontrar evidências quantitativas que justifiquem a preocupação dos dirigentes ferroviários com o problema cambial.
E de fato tais evidências são bastante difusas, visto que não atingiam igualmente à todas as empresas. No entanto, admite-se aqui que em função da desvalorização da moeda nacional podem ser considerados como responsáveis pelo aumento dos custos para as empresas ferroviárias, no período 1900-1920, os seguintes fatores: a) importação de material rodante: locomotivas, carros de passageiros e vagões (e/ou respectivas peças e componentes); b) importação de materiais necessários para manutenção e/ou expansão da via permanente: trilhos e acessórios; c) importação de combustível (carvão): caso em que devem ter sido mais afetadas aquelas empresas, que demandavam proporcionalmente mais carvão à lenha, que as outras;7 d) importação de lubrificantes: graxas e óleos; e) salários: que tendiam a aumentar diante do aumento do custo de vida e em função da crescente mobilização sindical dos ferroviários, que lutavam contra tais perdas; f) encargos de dívidas externas: que atingiam as empresas endividadas em moeda estrangeira.
Segundo Fritsch (1990, p. 37), os anos 1900-1913 podem ser considerados como pertencentes a uma era de ouro. Durante este período o produto agregado chegou a crescer a uma taxa média superior a 4% ao ano, o que contribuiu para a formação de capital na indústria e para o reaparelhamento do sistema de transportes (portos e ferrovias) em um cenário de relativa estabilidade de preços. E, embora as importações (principalmente de manufaturados) tenham sido afetadas a partir de 1913 as exportações brasileiras continuaram a atingir os países envolvidos na guerra, como a Alemanha, até 1916, através de países neutros da Escandinávia. Esse comércio foi interrompido somente a partir de início de 1917, devido à estratégia alemã de reagir ao bloqueio econômico por meio do uso de submarinos que resultou em afundamento de um cargueiro brasileiro na costa francesa em abril de 1917. O desempenho das exportações brasileiras foi novamente retomado após o armistício de 1918, quando voltou a ocorrer “aumento explosivo das exportações brasileiras” (Fritsch, 1990, pp. 45-46).
Seria de se esperar, por conseguinte, que a demanda por transportes fosse crescente no período; como de fato ocorreu. Conforme se pode verificar no gráfico 1, entre 1905-1920 o total de mercadorias transportadas pelo conjunto das principais ferrovias brasileiras analisadas cresceu quase 244% enquanto o transporte de passageiros foi acrescido em 235%. O transporte de bagagens e encomendas cresceu em quase 355% e o transporte de animais foi aumentado em mais de 316% (mvop, anos diversos).
E seria esperado também que simultaneamente a este aumento da produção ocorresse expressivo aumento na quantidade de empregados; como também de fato ocorreu (ver gráfico 2).
Por consequência deste aumento da produção poder-se-ia, num primeiro momento, aceitar que seria lógico e coerente o aumento do nível de contratação de trabalhadores diante da expansão da quantidade de transportes como ocorria naquele período; principalmente, considerando-se, que houvera aumento na extensão das linhas férreas. No entanto, a expansão deste quadro de trabalhadores se mostrou bastante elástica se considerado que este conjunto de empresas, que operava com cerca de 30 000 trabalhadores em 1905, contratou mais de 5 000 ferroviários entre 1905 e 1909, 15 000 entre 1909 e 1913 e seguiu contratando outros 15 000, entre 1913 e 1918, chegando a contar em 1920 com mais de 70 000 trabalhadores (mvop, anos diversos).
No início da segunda década do século xx, mais particularmente durante a primeira guerra mundial, estes números começavam a dar mostras, como se fora um sintoma, de que alguns fatores estavam pondo em risco a sustentabilidade dos negócios das empresas ferroviárias brasileiras. A quantidade de trabalhadores, que havia crescido de modo proporcional à expansão das linhas entre 1905 e 1913, começou a crescer de modo desproporcional a partir do período 1913-1918, e seguiu de forma crescente nos anos seguintes.
Enquanto a extensão da malha das empresas analisadas aumentou de 13 476 quilômetros em 1905 para 28 224 quilômetros em 1920 (aumento de 109.4%) a quantidade de ferroviários contratados por estas empresas cresceu algo em torno de 143 por cento.
Por que tal fenômeno ocorria? Basicamente, porque a expansão de transportes como o de passageiros, animais e de bagagens e encomendas, que se tornaram desproporcionalmente crescentes neste período, requeriam proporcionalmente mais mão de obra.8 Conforme explica a teoria econômica, na ausência de investimentos em fatores de capitais (locomotivas, vagões, trilhos novos, etc.), se torna necessário acrescentar maior quantidade de fator trabalho se o objetivo for obter um mesmo nível de produção. Esta falta de investimentos em bens de capital parece ter dificultado, ao longo deste período analisado, a resolução daqueles fatores geradores de improdutividades advindos com o tempo de uso: da infraestrutura (obras de arte e de terraplenagem), da superestrutura (via permanente: lastro, dormentes e trilhos), e daqueles fatores relacionados a não substituição de vagões antigos e trilhos menos resistentes pelos mais modernos e de maior capacidade, e das locomotivas antigas por mais potentes. Fatores de produção que, por si só –coeteris paribus–, seriam capazes de ampliar a produtividade daquelas ferrovias.
Em termos absolutos verifica-se que a produção das ferrovias brasileiras continuou crescente no período 1905 e 1920. No entanto, conforme já salientado esta produção não cresceu de modo uniforme, o que implicou em rearranjos operacionais para se atender este aumento da demanda por transportes. Conforme se pode verificar a quantidade de circulação dos trens de carga (a direita do quadro 1) cresceu proporcionalmente mais que a produção de mercadorias transportadas (lado esquerdo).
Enquanto o transporte de mercadorias aumentou de 603 000 000 de toneladas por quilômetro (em diante tku) para 2 bilhões de tku (244%), a circulação dos trens de carga cresceu 267.5%, entre 1905-1920. E assim, diante deste aumento desproporcional de serviços necessários para atender à crescente demanda por transporte de mercadorias as ferrovias tiveram que contratar cada vez mais ferroviários para atender à crescente demanda por transportes de passageiros, animais e bagagens e encomendas. Ainda que (exceto no caso do transporte de bagagens e encomendas) houvesse uma desproporção entre os serviços produzidos (medidos em pkm e tku, respectivamente) e a participação destas modalidades destes transportes na geração da receita total.
Na média, entre 1905 e 1920, os transportes de mercadorias, que demandavam 54% dos serviços (unidades de tráfego, ut) foram responsáveis por 61% da receita no período. Na mesma lógica, o transporte de bagagens e encomendas, que demandava 1% de toda a produção ferroviária (medida em ut) proporcionava a arrecadação de 6% da receita. Já os transportes de passageiros, cujo atendimento demandava em torno de 40% dos serviços ferroviários (quatro em cada dez uts produzidas) correspondiam a cerca de 20% da receita; para o transporte de animais, o mais “deficitário”, a relação era de 10% dos serviços demandados (do total de ut produzida) para uma participação de apenas 3% na composição da receita total.
Vale notar que mesmo o transporte de mercadorias se tornou menos superavitário quando se comparam os anos 1905 e 1920 (ver quadro 2).
No primeiro ano 47% da produção total correspondia a 72% das receitas totais; em 1920, embora representasse 53% das tku totais, as mercadorias transportadas representavam apenas 57% da receita total. O que nos remete à afirmação de Saes (1981, p. 123), quando de sua análise sobre as principais ferrovias paulistas, entre 1870-1940. Segundo este autor, na medida em que a economia paulista ia se diversificando novas mercadorias iam sendo agregadas à pauta de transportes ferroviários; porém, a uma tarifa menor quando comparadas às do café, embora estas exigissem o mesmo volume de serviço realizado a um custo aproximadamente igual. E essa relação direta entre redução percentual do café na receita e aumento do déficit operacional, também já havia sido observada por Faleiros (2015, p. 17), em sua análise sobre a Estrada de Ferro Vitória a Minas. A título de exemplo, este autor toma o ano de 1926 quando haviam sido transportadas 25 251 toneladas de café, que foram responsáveis por uma receita nominal de 2 303:372$420. No mesmo ano haviam sido transportadas também 13 784 toneladas de madeira que geraram uma receita de 350:893$380. O que resultou em uma “relação de 0.091 para o café e de 0.025 para a madeira”; de onde se deduz que o frete do primeiro era 3.64 vezes maior que o do segundo. Portanto, embora houvesse acréscimo de outras mercadorias transportadas, sua remuneração em termos de fretes era marginalmente decrescente.
Em um segundo momento, essa demanda crescente por transportes em geral (de mercadorias, passageiros, animais, bagagens e encomendas) implicou como era de se esperar um aumento da circulação dos trens. Porém, esse aumento não ocorreu de modo uniforme. Considerando-se uma amostra de 20 ferrovias brasileiras se verifica que o percurso total dos três tipos de trens (de passageiros, mistos e de cargas) aumentou de 16 700 000 de km/ano em 1905 para 44 100 000 de km/ano em 1920, o que representou um crescimento de 164%. Embora, a somatória dos percursos dos trens exclusivamente de passageiros cresceu bem, menos: apenas 157%; ainda que a quantidade de passageiros por quilômetro (em diante pkm) transportados no período tenha aumentado em 235% –saltando de 318 600 000 pkm para 1.07 bilhão de pkm em 1920 (ver gráficos 3.A. y 3.B.).
Porém, para se conseguir atender o aumento da demanda por transporte de cada tonelada de mercadorias (medida em tku), tornou-se necessário ampliar, proporcionalmente mais, a movimentação dos trens exclusivamente de cargas. Fenômeno que ocorrera em 1909, mas que atingiu grandes proporções em 1913, ano em que as empresas analisadas se viram obrigadas a aumentar a movimentação dos trens, em pelo menos 50%, para atender a demanda por transporte de mercadorias naquele ano. Logo, não somente se transportou mais mercadorias a preços proporcionalmente menores, como se necessitou fazer uso mais intensivo de fatores de produção para a realização deste transporte de mercadorias; como foram mantidas as mesmas condições técnicas (locomotivas, vagões e trilhos) tornou-se necessário circular mais para se realizar proporcionalmente a mesma quantidade de produção por quilômetro. Além do aumento da circulação dos trens de passageiros e de cargas essas empresas também ampliaram a quantidade de trens mistos em operação, constituídos estes por carros para passageiros e de vagões, para mercadorias ou animais. Assim, os percursos realizados por este tipo de trem passaram de 5 700 000 quilômetros em 1905 para cerca de 9 600 000 quilômetros em 1920; crescimento de 67.5% (mvop, anos diversos). De onde se conclui que este aumento de trens mistos, tanto serviu para se atender alguns curtos itinerários de passageiros, bem como para o atendimento de transportes de bagagens e encomendas e animais, que se ampliaram, respectivamente, em 356 e 316% no período 1920-1905.
Portanto, o aumento desproporcional da quantidade de trabalhadores empregados pode estar relacionado ao aumento de serviços que requerem proporcionalmente mais mão de obra. Outra explicação, já apontada anteriormente, está relacionada à capacidade de tração dos trens de cargas,9 que se reduziu, notadamente nos anos 1909, 1913 e 1920.
Conforme se pode constatar ao se comparar a evolução da participação relativa dos transportes totais (de mercadorias, passageiros, bagagens e encomendas, e animais, medidos em tku) com a evolução dos percursos realizados por cada tipo de trens (de passageiros, mistos e de cargas), entre 1905 e 1920.
Ao longo do período analisado, as mercadorias (que eram tracionadas por trens de carga) representaram uma média de 61% de todo o transporte ferroviário (tku). Em 1905, todo este transporte de mercadorias era realizado com apenas 34.4% da circulação dos trens destas empresas. Em 1920, para movimentar esta mesma proporção de cargas (em tku) se fez necessário aumentar (desproporcionalmente) a circulação de trens, cuja participação subiu para 47.8% do total. Observa-se ainda que tal fenômeno não ocorreu do mesmo modo na modalidade transportes de passageiros. Na média, entre 1905-1920, foram transportados 33 800 000 passageiros por quilômetros. No entanto, a participação na circulação dos trens exclusivamente de passageiros se manteve numa média de 30% da circulação total dos trens (ver gráficos 4.A. y 4.B.).
E vale acrescentar que cerca de um quarto dos trens em circulação eram mistos, que tanto transportavam passageiros (em itinerários curtos), quanto transportavam cargas (bagagens e encomendas e animais); embora a participação destas duas últimas modalidades de transportes, juntas, equivalessem a algo como 5% de todas as tku realizadas pelo conjunto das ferrovias aqui analisadas. Importante observar que a maior utilização dos trens mistos, cuja circulação cresceu em termos absolutos, se tornara indispensável, dado que neste período vinha ocorrendo um enorme crescimento de demanda por transportes: de bagagens e encomendas, que (em tku) chegou a crescer em quase 356%; e de animais, que no período cresceu 316%, entre 1905 e1920 (mvop, anos diversos).
Em 1920, supõe-se, portanto, que poderia estar ocorrendo nestas três modalidades de transportes (mercadorias, bagagens e encomendas, e animais), um uso bem mais intensivo de suas locomotivas, vagões, trilhos, estações, depósitos, oficinas e trabalhadores para realizar a circulação de modo desproporcional à quantidade de tku produzida. O que contrariava a lógica de obtenção de maior saldo operacional, qual seja, a de que as ferrovias deveriam transportar proporcionalmente mais cargas (passageiros, bagagens e encomendas e animais), a um custo por unidade de tráfego (ut) relativamente menor.
E, uma das consequências diretas desta maior quantidade de trens em circulação foi o deslocamento de trabalhadores para os setores de tráfego e locomoção, respectivamente, cuja quantidade de trabalhadores se ampliou, respectivamente, de 28 e 26% do total para 31% dos empregados, em 1920; período em que a participação dos trabalhadores da via permanente foi reduzida de 41 para 33% do total de ferroviários, conforme se pode verificar nos gráficos 5.A. y 5.B.
Por consequência se verifica um aumento na despesa total comparativamente à receita total. As despesas que em 1920 representavam algo em torno de 80% da receita se ampliam para 120%, em 1920, puxadas pelo crescimento das despesas com o setor de locomoção responsável pela manutenção de locomotivas, carros e vagões e pelos respectivos salários dos trabalhadores alocados neste setor; despesas estas diretamente relacionadas com o aumento da circulação de trens.
Em 1920, poucas eram as ferrovias nas quais a evolução relativa dos transportes de mercadorias era maior que o desenvolvimento do transporte bagagens e passageiros. Tomando-se por amostra as 1910 maiores ferrovias brasileiras, se constata que isso ocorreu somente em três delas (Madeira Mamoré, Rede Bahiana e Vitória a Minas), quando se compara retrospectivamente 1920 a 1905. Em cinco destas empresas (E. F. Goyaz, Great Western, Oeste de Minas, Quarahim a Itaquy, e Santos a Jundiaí) o transporte de passageiros cresceu relativamente mais que o transporte de mercadorias; e, em quinze delas o desempenho dos transportes de passageiros ou de bagagens foi relativamente maior que os transportes de mercadorias (ver quadro 3).
Dentre as principais consequências deste padrão de transportes, que se configurou entre 1905-1920, está o fato de que os custos para a realização do tráfego tornaram-se crescentes quando comparados à receita.
E como fator ainda mais agravante deste quadro, verifica-se flagrante redução da receita obtida com os respectivos fretes das modalidades de transportes de mercadorias (principal fonte das receitas das ferrovias) e de passageiros (exceto no ano de 1920). Analisando-se os cinco anos escolhidos, tomando-se os preços médios dos fretes de 1905, constata-se que as ferrovias brasileiras (desta amostra de 19 empresas) tiveram uma arrecadação menor no frete de cada unidade de mercadoria transportada: de 16.3%, em 1909; 19.4%, em 1913; 40.4%, em 1918, e 20.7%, em 1920. Nesta mesma lógica, o transporte de passageiros rendeu fretes a menor, por pkm: de 11%, em 1909; de 14%, em 1913, e de 19% em 1918 (ver tabela 1). Em outros termos, estas ferrovias em conjunto arrecadaram menos por unidade de tráfego, em termos nominais, do que haviam obtido em 1905.
A título de mensuração, pode-se considerar esta perda de frete por unidade de transportes (na modalidade transporte de mercadorias e de passageiros), no período analisado, na tabela 2. Considerando-se que o conjunto destas ferrovias tivesse mantido aqueles valores de fretes por unidade de transporte, a preços de 1905, e considerando-se a produção (em tku e pkm) efetivamente realizada pelas ferrovias brasileiras (coeteris paribus), pode-se calcular que estas empresas, em conjunto, teriam atingido saldos operacionais bem superiores aos alcançados no período analisado. Se assim o fosse, o saldo médio obtido entre 1905-1920 teria se ampliado de pouco mais de 4%, efetivamente realizado, para algo em torno a 19.5%.
É verdade que essa suposta manutenção dos valores obtidos por cada unidade de tráfego, por si só, não seria capaz de reverter a tendência de redução dos saldos operacionais. No entanto, tal exercício possibilita estimar que o saldo conjunto do setor poderia ter sido 15% maior (na média) que o efetivamente atingido pelo conjunto das ferrovias analisadas, entre 1905 e 1920.
Os déficits apresentados pelo conjunto destas empresas demonstram que estas empresas tiveram dificuldades em se adaptar à nova conjuntura de início do século xx, pois continuavam operando tendo como base o mesmo modelo de negócios montado no século xix. Embora estes primeiros anos do século xx sejam sabidamente marcados por profundas mudanças políticas, econômicas, sociais e tecnológicas. Que geravam um novo mercado interno que demandava cada vez mais movimentação de pessoas e circulação de mercadorias diversas.
Entre 1913 e 1920, as ferrovias brasileiras deixavam para trás seus melhores desempenhos operacionais, ocorridos em 1902, quando o saldo operacional médio do setor atingiu patamares próximos a 30% da receita (ver gráficos 6.A. y 6.B.). Ao se comparar os saldos (relação entre as despesas totais e suas receitas totais), obtidos entre 1902 e 1920, verifica-se que ao menos nove empresas de um total de 20 dentre as maiores do setor apresentaram resultados negativos. Ao se tomar apenas o último ano analisado, 1920, percebe-se que onze delas apresentaram déficits naquele ano: Central do Brasil, –19.4%; Viação Férrea Rio Grande do Sul, –13.3%; Leopoldina Railway, –9%; Oeste de Minas, –46.6%; Madeira-Mamoré, –14.1%; Rede Bahiana, –10%; V. F. Cearense, –6%; Vitória a Minas, –13.7%; Noroeste do Brasil, –58.4%; Quarahim a Itaquy, –21.6%, e Rio do Ouro, –21.4 por cento.
Os déficits ferroviários parecem indicar, portanto, que as ferrovias não conseguiram vencer a esse primeiro grande desafio do setor no século xx: o de se reinventar, do ponto de vista tecnológico, diante de um cenário cujas dificuldades em se conseguir investimentos em fatores de capitais, tais como, locomotivas, vagões, trilhos, carros de passageiros, etc., tornava-se ainda maior devido às restrições impostas pelas adversidades provocadas pela primeira guerra mundial.
Os negócios ferroviários pareciam de fato menos atrativos, seja para os estados da federação, que não mais buscaram ampliar sua participação a partir de 1920, seja para os particulares que tampouco se mostraram interessados em arrendar linhas férreas pertencentes à União. Entre 1908 e 1913 a União havia avançado em sua condição de proprietária das linhas em operação no país, ampliando sua participação de mercado de 45% para 53.1%; e, seguiu avançando neste caminho chegando à condição de proprietária de 59.6% do total da malha férrea, em 1925.
Por outro lado, se reduziu a quantidade de ferrovias da União arrendadas aos estados, que caiu de 35% em 1913 para 13.5%, em 1925. Havia, portanto, fortes indicadores de que tanto os estados quanto particulares pareceriam poucos dispostos a aceitar por meio de arrendamentos as linhas estatizadas pela União, que teve ela mesma que administrar as linhas por ela encampadas. De administradora de algo em torno a 18% das linhas férreas, em 1913, a União passou a administrar pouco mais de 29% das linhas férreas brasileiras, em 1925. Estava desenhado, assim, um caminho rumo à estatização do sistema ferroviário que se tornava irreversível.
Ao final de 1949, no entanto, a maior parte do sistema ferroviário nacional estava composta por empresas deficitárias, e o avanço do Estado no setor demonstrava claramente que este não mais conseguiria repassar estas empresas encampadas, por meio de arrendamentos, aos particulares ou aos estados. De um total de 35 972 quilômetros de vias em operação no Brasil, restaram apenas 4 820 quilômetros de linhas férreas (13.4% do total) que seguiam administradas pela iniciativa privada e 11 142 (31%) quilômetros pelos estados (ver quadro 4).
Mais de 20 000 quilômetros de linhas (ou 55.6% do total) eram administradas diretamente pelo governo federal, que era proprietário de 27 742 quilômetros de vias, equivalentes a 77% do total (mvop, 1955, pp. 15-17). Certamente, iniciava-se aí um novo ciclo de modelo de negócios ferroviários brasileiros, fundamentado na estatização do sistema.
As argumentações apresentadas, sobre o contexto das empresas ferroviárias brasileiras no período, 1905 e 1920, são fundamentais para se compreender quais foram as principais dificuldades que precipitaram o processo de estatização do setor, que se tornou quase total ao final da década de 1940.
Tomando-se em conta as considerações apresentadas por Bogart (2009) sobre os motivos que conduziram às estatizações das ferrovias no século xx, discorda-se, neste artigo, que tais estatizações estivessem relacionadas à concorrência ruinosa ou a baixa demanda. Os argumentos apresentados neste texto indicam que os aumentos dos custos operacionais se tornaram relativamente altos durante a primeira guerra mundial. E tais custos se combinaram ainda com um agravante fator que foi a redução da receita obtida com os respectivos fretes das modalidades de transportes de mercadorias (principal fonte das receitas das ferrovias) e de passageiros (exceto no ano de 1920). Analisando-se os cinco anos escolhidos, tomando-se os preços médios dos fretes de 1905, constata-se que as principais ferrovias brasileiras tiveram redução na receita ao longo desses anos.
E embora tenha ocorrido aumento da quantidade de transportes este acréscimo acabou por ampliar desproporcionalmente a quantidade de mão de obra necessária para a realização destes serviços.
A desvalorização da moeda nacional deve ser considerada como um dentre os fatores responsáveis pela redução do saldo operacional das ferrovias brasileiras, no período 1905-1920; ainda que suas evidências tenham sido bastante difusas, visto que não atingiam igualmente a todas as empresas. Conforme argumentam Duncan e Saes existe uma relação entre desvalorização da moeda e aumento dos preços dos produtos importados para as ferrovias, que também afeta os consumidores em geral; dentre estes consumidores estão os ferroviários, que diante do aumento do custo de vida, se supõe, lutarão para reduzir suas defasagens salariais.
Ao final da primeira guerra mundial diversas empresas ferroviárias dentre as principais do setor tornavam-se estruturalmente incapazes de atingir seu ponto de equilíbrio; o que contribuía para distanciar os investidores privados deste mercado, restando àquelas o amparo estatal. E isso, vale destacar, ocorreu em um momento de baixa concorrência, uma vez que as ferrovias não enfrentavam ainda a pesada concorrência rodoviária, que será crescente após a década de 1920; assim como aquelas empresas, até então, não tinham que pagar certos custos dos encargos trabalhistas que também se tornaram crescentes a partir de então.
Os déficits ferroviários, crescentes, parecem indicar, portanto, que as ferrovias, salvo raras exceções, não conseguiram vencer a esse primeiro grande desafio do setor no século xx: o de se reinventar diante de um cenário cujas dificuldades em se conseguir investimentos em fatores de capitais, tais como locomotivas, vagões, trilhos, carros de passageiros, etc., tornava-se ainda maior devido às restrições impostas pelas adversidades provocadas pela primeira guerra mundial.
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Ivanil Nunes
Es posdoctor por la Universidad de São Paulo, Brasil, y por la Universidad de Buenos Aires, Argentina. Es doctor en Ciencias Sociales por el Programa de Integración en América Latina de la Universidade de São Paulo; maestro en Economía y licenciado en Ciencias Sociales, ambos grados por la Universidade Estadual Paulista. Es editor de la revista Historia Económica e Historia de Empresas, de la Asociación Brasileña de Historia Económica. Entre sus últimas prublicaciones se encuentra el libro, en coautoría con Rogério Naques Faleiros, Sistema de transportes e formações econômicas regionais: Brasil e Argentina (2016). Actualmente se encuentra en proceso de ejecución de posdoctorado en el Departamento de Economía de la Facultad de Economía y Administración de la Universidade de São Paulo (2016-2017). Correo electrónico: ivanilnunes@usp.br
Conforme definição do Banco Central do Brasil, taxa de câmbio é o preço de uma moeda estrangeira medido em unidades ou frações (centavos) da moeda nacional (Banco Central do Brasil, 2014).↩
O termo união refere-se à pessoa jurídica de direito público interno; trata-se da entidade federativa autônoma em relação aos Estados-membros, municípios e distrito federal. Possui, portanto, competências administrativas e legislativas determinadas constitucionalmente, conforme art. 1o. da Constituição da República Federativa do Brasil (Brasil, 2016).↩
A E. F. Sorocabana foi encampada pelo governo federal em 1904, que a transferiu ao governo do estado de São Paulo em 1905. Este último arrendou-a a um consórcio franco-americano, entre 1907 e 1919. A partir deste ano a empresa foi administrada pelo governo de São Paulo por meio da Secretaria dos Transportes até 1971, quando foi integrada à Fepasa (Ferrovia Paulista S. A), em 10 de novembro de 1971 (Fepasa, 1991, p. 13). A E. F. Araraquara, após falência em 1914, foi inicialmente administrada por credores, durante dois anos. Entre 1916 e 1 de novembro de 1919 a ferrovia foi administrada pela empresa estadunidense Northen Railroad Company, quando foi encampada em definitivo pelo governo paulista (Fepasa, 1991, p. 16).↩
A expressão break-even point (bep) é utilizada em economia e finanças para indicar o ponto de equilíbrio entre as despesas e receitas de uma empresa. Quando os cálculos indicam que empresa atingiu o ponto de equilíbrio isso significa que os custos e as despesas totais são iguais à receita total, ou seja, a empresa não teve lucro nem prejuízo.↩
A amostra é composta pelo conjunto de 20 ferrovias classificadas a partir das receitas obtidas por cada uma delas, no ano de 1918, em ordem decrescente. Treze empresas desta amostra estavam estatizadas no ano de 1918: Central do Brazil, Viação F. R. G do Sul, Great Western, Paraná, V. F. Sapucaí-Rede Sul-Mineira, Oeste de Minas, Madeira Mamoré, Rede Bahiana-R. V. da Bahia, Sorocabana, Rede Viação Cearense, Noroeste do Brasil, E. F. Goyaz, Rio do Ouro. No ano de 1918, eram empresas privadas: Santos a Jundiaí, Paulista, Leopoldina Railway, Mogyana, S. Paulo-Rio Grande, Victória a Minas, Quarahim a Itaquy (mvop, 1922).↩
Considerando-se aqui apenas a “sua margem operacional”, entendida como a porcentagem que restou das receitas após dedução das respectivas despesas.↩
O consumo da E. F. Santos a Jundiaí, cuja operação também ocorria em trecho da Serra do Mar, por exemplo, fora de 14 kg de carvão por locomotiva/km, em 1909, enquanto na Leopoldina Railway, no mesmo ano, este consumo esteve próximo a 8 kg (mvop, 1911, pp. 102-104).↩
Conforme constatado anteriormente por Ricardo M. Ortiz (1958): “Los servicios de pasajeros imponen mayor cantidad de personal en el manejo de los trenes, en las boleterías, en las dependencias destinadas a los equipajes, en los comedores, en los carros dormitorios y en los servicios conexos” (p. 190).↩
Importante ter-se em mente que no caso de investimentos em fatores de produção (tais como locomotivas, vagões e trilhos) tal perda relativa da capacidade de tração dos trens de cargas seria evitada. Uma locomotiva mais nova e potente, rebocando vagões mais modernos, com maior capacidade de toneladas por eixo, sobre um trilho com maior resistência, assentado sobre uma infraestrutura adequada, faria com que uma mesma equipe (maquinista e seu assistente) transportasse muito mais toneladas por quilômetro.↩
Exclusive a E. F. Rio do Ouro, devido indisponibilidade de dados.↩