Reseñas

 

Angelo Alves Carrara (org.),
À vista ou a prazo: comércio e crédito nas Minas setecentistas, Juiz de Fora,
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2010, 156 pp.

 

O presente livro foi organizado pelo Prof. Angelo Alves Carrara, do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora (Estado de Minas Gerais/Brasil), e teve como principal objetivo analisar as múltiplas formas do comércio e do crédito existentes na Capitania das Minas Gerais do século XVII. Trata-se de um trabalho relevante e muito bem vindo para a pesquisa histórica econômica e social.

Constituído de sete capítulos, sendo os dois primeiros de apresentação do objeto e de uma síntese sobre os textos apresentados, e os outros cinco divididos em duas partes, "Comércio e Crédito" e "Contratadores e Comércio em Minas Gerais setecentista", o livro tem grande importância para a historiografia económica e social brasileira em virtude da originalidade dos textos, todos frutos de pesquisa documental em arquivos, principalmente no Arquivo Público Mineiro, Coleção Casa dos Contos, Instituto del Patrimonio Histórico y Artístico Nacional, Museu do Ouro, Casa de Boraba Gato, Cartórios, Códice Costa Matoso e Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais.

O primeiro capítulo, escrito pelo organizador do livro Angelo Alves Carrara, Prof. Dr. da Universidade Federal de Juiz de Fora, e tendo como título "À vista ou a prazo: comércio e crédito nas Minas setecentistas", tratou especificamente da importância do ouro como moeda e, como destaca o autor, "realização pura, perfeita do capital mercantil" (p. 7). Dividido em três seções, o capítulo apresentou, primeiramente, uma discussão teórica sobre a moeda e sua relação com o mercado. A partir do debate entre Ruggiero Romano e Carlos Sempat Assadourian sobre o papel da moeda na economia colonial no Império Espanhol, além de novas perspectivas, como as de Jeróme Blanc, que privilegiou trabalhar "abordar a moeda não mais pelos agregados macroeconómicos, mas pela micro-escala á qual se revelam os comportamentos monetários e sua inscrução social" (p. 12), o autor vai analisar como ocorreu a circulação da moeda no mercado interno colonial, particularmente na capitania das Minas Gerais, a principal região aurífera do Estão do Brasil. Para tanto, vai pesquisar os locais "onde essa circulação ocorria": as lojas e as vendas.

Nas segunda e terceira seções, Angelo A. Carrara, através de uma documentação primária diversa, desde a Consulta do Conselho Ultramarino até Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, reforçou a importância dos estabelecimentos comerciais enquanto locais da circulação da moeda e das atividades económicas em geral. Embora sinalizou que mesmo se tratando de um determinado espaço económico, a loja, uma conjuntura histórica e geográfica específica, Minas Gerais na primeira metade do século XVIII, o texto e a obra reforçaram um dos objetivos gerais: o de apresentar uma nova documentação sobre o comércio e a atividade de crédito.

O segundo capítulo de Maximiliano M. Menz, Prof. Dr. da Universidade Federal de São Paulo, "O crédito e a economia colonial", constituiu-se numa síntese sobre os demais capítulos, reforçando a importância do tema, o crédito no sistema colonial português. A partir de uma revisão historiográfica sobre o comércio no Brasil colonial, retornando com a polémica Fernando Novais e João Luiz Ribeiro Fragoso sobre a questão da autonomia do mercado interno colonial no interior do Antigo Sistema Colonial, o autor reforça a importância dos textos apresentados no livro para o referido debate, como também avança para explicar certas questões como a cobrança dos juros por parte dos comerciantes e o discurso moral católico na sociedade, como, por exemplo, a fixação dos juros pelas autoridades com base na ordenação filipina.

No terceiro capítulo, primeira parte, a doutoranda Alexandra Maria Pereira, Programa de Pós-graduação em História Económica, Universidade de São Paulo, analisou "As rotinas de uma loja estabelecida durante a primeira metade do século XVIII" (p. 33). Com base na documentação da Casa dos Contos do Arquivo Público Mineiro, livro de contas correntes escriturado no período de fevereiro de 1737 a 1738 -identificado como "borrador de comerciante anónimo"- o texto destacou as transações de mercadorias do comércio importador e, principalmente, a venda a crédito registradas, o que significa que a loja do comerciante era um espaço não só de trocas, mas também de crédito. Cruzando esta documentação com outras fontes, a autora concluiu que o comerciante anónimo era Jorge Pinto de Azevedo, negociante reinol e um dos mais importantes contratadores ("asientista") do período.

Importante ressaltar que autora criou uma classificação dos clientes das lojas, a partir do consumo das mesmas, a saber: os comerciantes, que adquiriam as mercadorias a grosso; os consumidores cujas compras equivaliam aos dos comerciantes, mas que "adquiriam produtos para consumo próprio" e com valores superiores a 100 000 (cem mil réis); os consumidores cujas compras não ultrapassaram a 100 000.

No quarto capítulo, primeira parte, a já referida doutoranda citada acima, Alexandra Maria Pereira, apresentou um trabalho "desdobramento do estudo anterior" (p. 53). Neste trabalho priorizou-se "a análise da distribuição geográfica dos estabelecimentos comerciais das comarcas de Vila Rica e do Serro frio" (p. 57) e teve como fonte primária dois livros de capitação (capitação era um imposto cobrado sobre o número de escravos): "um, para o termo de Vila Rica para o ano de 1746, e outro, para a Comarca do Serro Frio em 1736". Assim como o trabalho anterior, os dados quantitativos expressos nas tabelas são de suma importância para o análise das mercadorias consumidas e transacionadas, permitindo reforçar uma informação presente na historiografia: "as vendas eram estabelecimentos frequentemente localizados nas regiões mais distantes do centro da vila" (p. 59).

Outra informação importante estava na diferença do perfil sócio-económico dos proprietários do pequeno comércio em relação aos donos de lojas, de modo que o gênero e condição social são "caracterísitcas determinantes no processo de diferenciação do comércio de grande porte para o depequeno porte". Destacou-se no pequeno comércio a presença do gênero feminino (mulheres) se sobrepondo ao masculino (homens); no caso do comércio dass vandas a presença dos homens se sobrepondo as mulheres, e nas lojas a totalidade era de homens. Importante constatar a presença de mulheres negras, escravas ou forras (livres), conhecidas como as negras de tabeliros e vendeiras no pequeno comércio ambulante, ator social importante e já presente na historiografia brasileira.

O quinto capítulo, parte i, do doutorando Raphael Freitas Santos, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, com o título "O Ouro e a palavra: endividamento e práticas creditícias na economia mineira setecentista", tratou das práticas creditícias e sua relação com o conhecimento pessoal "baseada na confiança que advinha desse mesmo conhecimento" (p. 71). Através de extensa documentação, desde testamentos e inventários até justificações e escritura de dívida e obrigações, encontradas no arquivo do Instituto del Patrimonio Histórico y Artístico Nacional, Museu do Ouro, Casa de Borba Gato, Cartório do Primeiro Ofício, verificou-se a complexidade e a variedade de práticas creditícias efetuadas por homens e mulheres nos seus cotidianos no termo de Sabará. Empréstimos em dinheiro, adiantamentos no pagamentos de seriços ou produtos, e outras, se constituíram nessas práticas.

Importante destacar a extensão das fontes. No caso das escrituras públicas foram mais de 913 escrituras para o período de 1713 a 1773, e no tocante aos indivíduos, ficou claro as diferenças com relação ao volume do crédito e o status social do devedor. O cruzamento das fontes permitiu ao autor verificar o perfil e a forma da transação envolvendo bens e outros tipos de propriedades. A participação do Juizado de Órfãos e Ausentes, "importante agente financiador da economia mineira setecentista" (p. 78) revelou a participação de um agente não só no crédito, mas, principalmente, para "impedir" que órfão fosse lesado. Em todas as operações de crédito e seus agentes, a confiança e a palvra eram fundamentais e, mais ainda, o acesso a informção.

O sexto capítulo, parte ii, o mestre Felipe Rodrigues de Oliveira, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, com o trabalho "Os fluxos mercantis da Capitania de Minas Gerais: o registro do Caminho Novo", realizou a "análise da circulação mercantil através do Caminho Novo" (p. 93), principalmente na segunda metade do século XVIII. Principal caminho de gente e de mercadoria, que partindo do Rio de Janeiro chegava às Minas Gerais, o Caminho Novo e, principalmente, o seu regitro, permitiu ao autor acompanhar as "flutuações do emprego do crédito no comércio" (p. 96). Através da documentação, livros de escrituração do referido registro, do Arquivo da Casa dos Contos, permitiu ao autor verificar a importância económica do contratador (seja individual, seja em sociedade com outros), que arrematou o referido contrato do registro, e qual foi o papel desempenhado pelo administradores do contrato (que não era a mesma pesso do contratador). Destacou-se nesses últimos, a presença dos potentados locais, o que mostrou a rede de relações envolvendo a arrematação dos contratos, desde o Reino até a Capitania e localidade.

Outro dado importante, consistiu no destino das mercadorias e para quem comprava ou vendia nas Comarcas de Minas Gerais. Embora na segunda metade do século XVIII, face ao declínio do ouro e crescimento do comércio do abastecimento, ficou claro a crescente importância da Comarca do Rio das Mortes, como a região de absorção da população, da produção da agropecuária e da geração de riqueza. Entretanto, corroborando coma historiografia recente, o trabalho demonstrou a manutenção da Vila Rica de Ouro Preto como "o principal destino dos produtos que entravam em Minas Gerais" (p. 104).

O sétimo e último capítulo, parte ii, tratou-se do texto do Prof. Dr. Luiz Antonio Silva Araújo, da Universidade Federal do Recóncavo da Bahia, "Tratos e contratos nas Minas Setecentistas". Tendo como objeto o estudo do contratador ("asientista") João de Sousa Lisboa e de sua rede de sociabilidade, envolvendo outros contratadores, procuradores, fiadores e administradores reinós, nas arrematações dos contratos, o autor perseguiu a ascensão social, política e económica daquele que construiu a Casa de Ópera de Vila Rica em 1769. Através da documentação composta pelos Livros de Conta Correntes do Arquivo Publico Mineiro e Requerimentos, Cartas e outros do Arquivo Histórico Ultramarino, foi possível reconstiuir não só a trajetória das arrematações feita pelo contratador e de sua rede desde 1745 (auge da mineração) até a sua morte em 1778, como também a complexidade dos negócios envolvendo os contratos, já que se tratava de uma sociedade/mercado cuja "economia era substantiva" (Karl Polayni), e não jogo da oferta e da procura.

Nos quase 30 anos de intenso negócio, envolvendo personagens como o já citado Jorge Pinto de Azevedo, Manuel Ribeiro dos Santos (do qual Lisboa foi caixeiro), João Fernandes de Oliveira (o velho), pai do desembargador João Fernandes de Oliveira (o "moço") que "teve como escrava e amante" Chica da Silva, e José Ferreira da Veiga, que foi caixa de Lisboa, depois negociante na capitania do Rio de Janeiro até voltar para Lisboa, onde foi considerado um dos maiores negociantes do período pombalino ( Jorge Pedreira), essa rede demonstrou o poder e a concentração da riqueza na figura dos contratadores. A ligação com autoridades da administração das Minas foi fundamental.

Por fim, vale uma ressalva. Numa próxima edição, será fundamental a presença de mapas da região, as comarcas, vilas e caminhos da capitania das Minas Gerais do setecentos. Sem estes mapas, um leitor leigo fica perdido e incapaz de compreender os varios lugares mencionados.

 

Carlos Gabriel Guimaraes
Universidade Federal Fluminense Río de Janeiro, Brasil